Foi assim, é. Começa-se o relato pelo final, estragando-o. Fiquem sabendo, pois, que não engoli a mosca.
Os olhares convergiram em mim todos: uns poucos, que me desconheciam, horrorizados pela blasfémia que saíra pela minha boca; os restantes, que eram os mais, admirados ante a grosseria, nada habitual em mim, no mínimo, em tão elevado tom de voz e lugar público. Arrependi-me no logo-logo, não porque me aflija obrar para não-seres em cuja existência desacredito, antes porque faltando-me escasos pontos para o ingresso na categoria dos desvariados, receei somar mais alguns. Não disse, mas estava num café, felizmente, na Aldeia —nem quero saber se isto me acontece num botequim qualquer de passagem. Pedira um pingo (ninguém me mandou!) e acheguei a chávena aos lábios, a tactear a temperatura. Ao primeiro e sempre breve golo, notei no centro da língua um lixo como de meio centímetro, que levei à ponta para examinar a consistência, entre mole e dura, seca, palhenta, descartando aí que fosse migalha de pão ou bolinho perdida e achada. Impunha-se uma análise visual. Em má hora. Quando percebi que aquilo era uma múmia, preta, mate, os brilhos só do líquido, sacudi a palma da mão como quem se escaldou e proferi as tais palavras podres que provocaram nos clientes sossegados de sábado e meia manhã, as cabeças debruçadas sobre o jornal, o sobressalto referido.
Todo o dia, no lugar exacto da língua onde premi contra a parte interior dos incisivos centrais superiores para melhor identificar o objecto estranho, conservei a sensação repugnante do díptero desalado, como a marca fóssil dum pé de dinossauro na pedra, e deplorei, deploro ainda, que a curiosidade me impedisse traga-lo, eu e o bicho dessabidos, sem considerações nem inquéritos.
14 comentários:
Eh, eh, eh, ao ler o título, ainda pensei vagamente que tivesses lido o mesmo livro que eu, em que o autor o diz em tom de ironia. Mas não, afinal não tem nada a ver.
No teu caso específico, também preferia a ignorância! Ou engolir a mosca na ignorância, melhor dizendo! Mal não havia de fazer por aí além, a não ser para a própria mosca, obviamente! ("ai do bicho que passa pela goela de outro bicho!", como dizia um amigo meu). Já a sensação de nojo que a percepção da verdade te deu, pois, embrulha o estômago de qualquer um! Pelo menos, os mais sensíveis... (`_´)
Quanto à blasfémia, paciência! Um desabafo num momento desses é mais que compreensível!
Beijoquitas!
Tamén vostede... en fin, a alimentación, sempre equilibrada; que mal lle había de facer algo de proteínas?
Não tem dúvida, Teté, há casos em que é preferível a ignorância. Diz o ditado que a verdade nos faz livres, mas por vezes mete nojo. Esta é uma.
Pior foi depois, que não conseguia parar de rir, quando me pediu a funcionária para explicar o que acontecera e eu que não queria, a dizer-lhe que se contava saía a clientela espavorida.
A blasfémia saiu-me de dentro, que até eu me assustei, mas tu já sabes que com as moscas não me dou, imagina...!
Estou segurísima, Kaplan, de que mal non me había de facer. E o bicho, que seguramente saíu do cartón de leite, estaría pasteurizadito, pero as proteínas prefíroas nun chuletón.
Fun testigo do "incidente" polo que quixera decir que no primeiro intre pensei que o tal pingo estaba quente a rabiar "ainda non morreu quen o quentou", que se di pola miña bisbarra, hasta que xurdiron atropeladamente, dispois duns segundos, as xustas blasfemias apontando ao produtor desaprensivo que anuncia leite no carton y engade pola sua conta outas proteinas "estranxeiras". Pareceume un dino comportamento o de pedires outro cafeciño... eso sí ben preto. Desta maneira se deixouse craramente exonerado de toda culpabilidade o ben apreciado establecemento onde pasou o tal incidente.
Ui, ui, Iuque (ou Luque?, nese tipo de letra non se distingue o "I" maiúsculo do "l" minúsculo), se comezan a aparecer testemuñas das minhas experiencias extrasensoriais, vou ter que escribir con muito tento. Non me vaian desmontar as fantasías.
Calquera volvía pedir un cortado, que igual me saía de premio a araña que matou a mosca...
Gustoume a de "aínda non morreu quen o quentou". Un día destes, róubolla ao patrimonio popular.
Grazas polo esclarecemento ao público e benvido.
Se ficaste todo o dia com a sensação de"Mosca tel"entre a lingua e o céu da boca, que te possa suavizar ao contar-te que ainda hoje trago comigo o gosto horroroso de uma barata recheio de um pão de Viana
Beijo
Se a intenção foi boa, Anónimo, não suavizaste nada. ;) Barata é ratazana ou gaivota dos insectos (e nem ratazanas me metem nojo da mesma maneira, com seus bigodes tão parecidos com as antenas das outras) e ocupa o primeiro lugar na categoria de seres vivos que me arrepiam (não incluo aqui imbecis humanos com poder), seguida unicamente e muito ao longe pela mosca.
Se a mim me acontece isso da barata no pão (nem que seja de Viana, nem de Avintes, nem de mel)... não quero pensar, provavelmente destas horas não tinha língua.
Felizmente a mosca não tinha gosto nenhum e foi só a sensação contra a língua que ficou, que fica ainda (disse "todo o dia", mas continua cá).
E quase (eu agradeço, mas... compreende) dispenso o beijo que me mandas, não vais partilhar comigo o tal gosto ou desgosto. Mas vá um abraço forte.
Mesmo assim não está mal, para quem já encontrou um molar (dente) chumbado no meio de um prato de moelas...
Saudações do Marreta.
Essa tem explicação, Marreta, e deveste apresentar queixa se te puseram um molar só. O cozinheiro com certeza era espanhol: tu pediste "moelas" e ele entendeu "muelas", que são molares. `_^
Isso é frescura, sabes quantos bichos desses comes durante o sono? Têm proteínas e tudo!
Já disse, Rafeiro: elogio da ignorância. Mosca no sono é músculo na vigília. `_^
Olá! Desejo que estejas bem. M e esbaldei de rir com esse post, até estou a cantar uma música que tem aqui, chamada “mosca na sopa” (Raul Seixas). Tem uma parte que diz assim...
Eu sou a mosca que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca que pintou prá lhe abusar
Beijos e sorte com as moscas na próxima.
Oi, oi, Euzita Verdita,como então é isso? Riste... não, esbaldaste de rir! com a minha desgraça? Achas que isso é bonito? Hm! Tem uma música com moscas na sopa aí? Pois está na altura de fazermos uma música de mosca no café: Você é a mosca que sumiu no meu café, você é a mosca que voou para o Cabaré... Vou ouvir essa do Raul Seixas: não pode ser melhor.
Beijos. As moscas que tenham cuidado comigo!
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