quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Ensaio de defunto

No discurso da vida estão as histórias todas inscritas como alcouve de pimentos. É só pegar nelas e interpreta-las —cada quem à sua maneira e consoante os dias e a disposição—, que é transplanta-las, estruma-las, rega-las e mais catar-lhes, no fim, as erveiras adjectivas, para elas crescerem coloridas e saborosas, a fazerem cócegas de pontos picantes na garganta ou na barriga —isto também, consoante.

De aí a dar-se a gente de encontro com elas é um passo só, de nem perna comprida, nem pouco sossego: aparecem na volta da curva saudando num boa tarde educado que exige correspondência, sem escapatória. É assim com todas. Foi assim com esta.

A primeira intuição da novidade veio pelos carros no cruzamento, dois, insólitos: um branco, outro prateado (ou argênteo, poetizando), ordinários, à direita. Estavam os olhos dos motoristas espetados no outro caminho, à esquerda; os meus despregando-se em trajectória idêntica, travando devagar, acautelados ante o imprevisto. Foi aí que deparei com a segunda e principal cena. Em bairro de vizinhos contados eram os mais presentes, crianças e velhos, mulheres sobretudo, ao fundo, como séquito de falecido ainda morno, mas sem os prantos, nem elevados nem esmaecendo; só rumores de léria despreocupada, intranscendências. Na frente, luzes de ambulância faiscando silêncios, que como se nada, até parecia partida para casamento não fossem as roupas de cotio e o rapaz na maca, distendido, coberto pelo lençol até o peito (era vivo, por tanto), braço direito dobrado e a mão respectiva em concha baixo a cabeça, como quem matuta se se levante se não e se deixa bem deitado, já logo se vê.

—E então? —inquiriu a minha voz dissimulando curiosidade em cortesia interessada— Aconteceu o quê ao neto?
—É execução de ensaio —tranquilizou-me a inquietação a avó Gaudência, o reflexo do sol a tilintar-lhe músicas no ouro dos dentes.
—Teatro ou cinema? —perguntei procurando sem achar câmaras, apontador, claquete.
—Vida —respondeu—, ou mais precisamente: morte.
—É grave, logo, a doença? —aventurei num pesponteado tímido a resposta.
—Qual doença? Olhe para ele, que tem duas rosas a florescer, meu anjo, na cara! —ofendeu-se-me.

À minha expressão transparecida de interrogantes esmiuçou os detalhes, a lengalenga decorada como papel de actriz protagonista quase, demorando-se no que eu resumo. Da única certeza que temos é bom estarem as pessoas preparadas, que depois no último momento sempre faltam flores ou figurantes. Não vá ser...

—Como hoje mesmo. Não viu? Já lá vai a criatura definhando pela boca os ânimos e o padre cura nem apareceu com os óleos. Imagine só, no dia das verdades, que tal ausência se desse!

Fui-me indo, promessa engastada na despedida de passar no regresso (só beber o café e vir, aleguei adiantando desculpas) a dar os pêsames.

—Não tenha pressa em voltar —gritou-me num fio soluçante—, que ainda chega vivo ao hospital e o velório, com sorte, se não demorar muito a morrer, é só na anoitecida! Tem castanhas e vinho quente, da casa! Não perca, que estão frias as noites, e a televisão não dá coisa nenhuma!

Na arrancada, enxerguei pelo retrovisor a batina do sacerdote na distância, como asas de corvo cansado, o rostro ao rubro pelo esforço da corrida, diante o coroinha aos pulos acirrando-lhe na pachorra, capote alvíssimo de renda de Guimarães guarnecido e os sapatos lustrados, descaindo a cruz a meio pau, como num baile de máscaras sem trilha sonora.

16 comentários:

Teté disse...

Esses simulacros são tão fictícios, com as pessoas a fazer (ou não) o seu "papel", que no dia em que haja um acidente, um incêndio, etc., a preparação não é nenhuma!

Uma amiga minha, que trabalha numa grande empresa, de vez em quando tem de abandonar tudo o que está a fazer, repentinamente, por causa de um alarme (de um simulacro, para ver como as pessoas se comportam). E saem todos calmamente, alguns até aproveitam para fumar o cigarrito, outros deixam-se ficar para trás, um ou outro prefere continuar o que está a fazer. Houvesse um incêndio, uma explosão, um terramoto, óbvio que a confusão ia ser muito maior, com fumo, chamas, gente e móveis caídos pelo chão, caminhos cortados, possivelmente tentavam todos sair atropelando-se uns aos outros, em pânico... Enfim, há sempre quem tenha ideias peregrinas e um bocado inúteis (a meu ver)!

Curiosa essa ausência do padre cura, tão relevante num acidente... (^_^)

Sun Iou Miou disse...

É assim, Teté, no dia das verdades, só os mortos é que estão no lugar correspondente, que até pode ser desconhecido para os vivos. Não há script nem partitura que valha.

O padre cura, sendo as 16.30 horas, desconfio que vinha de dormir a "siesta". (`_^)

Rafeiro Perfumado disse...

Esse tipo de cenas não deveria ser mais no Carnaval? Que raio de encenação é essa?!?

Sun Iou Miou disse...

Na verdade, Rafeiro, não sei se era encenação de Carnaval ou antes de Halloween!, mas acho que não iria viver (nem morrer por isso... espero!) para esse bairro.

Lili disse...

demasiada ficçom, sim...

Sun Iou Miou disse...

A ficción nunca é de mais, Alodia, penso. O que me sobra é realidade.

luque disse...

No meu maxin, paresceme una moi bela cena que poideria facer parte do guión (¿roteiro?) dun filme de PP Pasolini ou ben L Visconti. Ata a avoa Gaudencia poderia seres perfeitamente interpretada pola inefavel Ana Magnani e o rapaz polo A. Delon de Rocco e os seus irmans...?

Sun Iou Miou disse...

Non é má idea, Luque. Que menos que directores e actores defuntos para este filme?! Case renuncio como guionista. Hihihi!

luque disse...

Na epoca eletronica na que vivimos ¿cal e o problema?
¿Non cantan e interpretan xuntos vivos e defuntos?.
Concordo no caso dos direutores, xa poderia seres un pouco mais complexo ...

Sun Iou Miou disse...

Problema ningún, Luque. Só digo que visto que entre os participantes vai haber maioría de finados, fago mutis polo foro, que estou moi a gusto viva. `_^

Marreta disse...

Se isto tivesse sido escrito hoje, dia 29, diria que se trataria de algum acto simbólico comemorativo de mais uma castanhada servida por gauleses e com mais uns defuntos romanos da ordem.

Saudações do Marreta.

Sun Iou Miou disse...

Foi escrito no dia 27 (embora publicado no seguinte), Marreta, lamento imenso, pois foi nesse dia que aconteceu a parte que aconteceu, mas não nego que uma parte, a que não aconteceu, se devesse à influências destes dias em que defuntos e vivos se confundem. Será o vinho?

E boa farra blogosférica por essas bandas! Bebam com sentido, com todo os sentidos!

Xan disse...

Xa me imaxino as funerarias ofrecendo simulacros de morte en vida no catalogo de ofertas funerarias para o día despois. E o cliente-cadavre no cadaleito ca seriedade que se lle supón a ese tránsito en vida. Eso si que sería un Cabaré e o Señor cura bailando “A carolina´
Gostei
Unha aperta

Sun Iou Miou disse...

Xan, as funerarias son capaces de todo e iso que é o único negocio onde nunca faltan clientes. E agora con isto das tele-lápidas dos rusos aínda imos ter que pasar a vida de pose en pose e largando frases lapidarias para lucirmos bonitos nas imaxes post-mortem.

Grazas pola visita e benvido.

Oscar disse...

Ainda há castanhas e vinhos para mim? Chegar atrasado às festas, velórios e encontros é o meu talento. :-(

Sun Iou Miou disse...

Se não há, Oscar, inventam-se. O teu talento não é só chegar tarde: é ter sempre quem espera por ti.