Talvez mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.
António Lobo Antunes, Memória de Elefante
António Lobo Antunes, Memória de Elefante
Era matéria pendente. Quando na feira da Invicta, há já alguns meses, me enfrentei a uma parede empapelada das obras suas, vacilei entre me deixar seduzir pelos títulos (apetência minha de norma geral) ou começar num dos dois extremos. Decidi atacar pelo princípio no fim. Depois, o volume escolhido pousou na mesa de cabeceira mudo, na espera de que as mãos minhas cirúrgicas e os meus olhos sôfregos mergulhassem nas suas tripas. A hora chegou e foi meu companheiro de cafés desta semana. Nessas andava e gozando em cada frase, nos tons agres de humor e nos outros, pungentes, de misérias, quando deparei com a entrevista que lhe fizeram no JL. Aí matou-me, porque acabei por adorar nele tudo, e porque me obriga a lê-lo inteiro ("Quero fazer o que mais ninguém fez": JL 1018, pg. 23), que não é tarefa de dois dias e meio. Mas, por enquanto já prometi que o próximo vai ser o último e agora já sim guiada pelo título, que só ele merece a minha rendição.
No entanto, as últimas páginas calharam-me na mesa duma tasca de Âncora, Vila Praia de, a onde fui instigada pelo estímulo das bancadas de peixe fresco na ribeira sob os guarda-sóis coloridos, Atlântico em pano de fundo rebrilhante e a calor morna deste outono. Enquanto vinha da cozinha o crepitar do óleo em que se fritavam, coitados bichos mortos!, as fanecas, enquanto não chegavam para eu as espulgar de espinhas e saborear a carne branca em lascas com reflexos irisados em forense necrofília, slurp, tive de conter mais dum sorriso, virar o rosto contra a parede, agachar a cabeça, que não é sério a gente rir sozinha, menos chorar na linha a seguir, sobre uma toalha de papel que cobre a clássica marinheira, quadros azuis e brancos, na sala de jantar (no rés-do-chão, apenas desta volta, sem rima de primeiro andar), onde operários de fato-macaco convivem com executivos engravatados em barulhos de talheres e copos, pratos, bocas. Safei num naco de pão trigo que me disfarçou os dentes e me suavizou a linha dos lábios.
Bebo o café na esplanada e remato o livro. Penso que Âncora é um bom lugar para morar no inverno e fora os fins de semana das invasões colectivas de ouropéis dominicais ou fato de treino. Sei que não é sério sorrir ao mar e ao relato que ainda me bole na moleza das vísceras, desafiando a nostalgia da noite em que não nos encontrámos. Lembras? Podes achar idiota, podes: a mim é ler o que me ajuda a existir sem ti.
9 comentários:
Que privilégio ter um Lobo bem domesticado à mesa...
Beijos e bom fim de semana.
Farto-me de rir sozinha a ler livros, nas esplanadas de Verão. Mas não se nota muito, que a malta anda por ali em veraneio e não nas fainas do mar ou outras. Já chorar na linha a seguir é um bocado mau, os que nos rodeiam começam logo com ideias se não será melhor chamar os senhores da bata branca, que deve ser um caso grave de esquizofrenia (agora pomposamente chamada doença bipolar, mas cá pra mim é mais do mesmo...)
Pelos vistos ficaste fã do Lobo Antunes. Ainda ando a ler "Viva o Povo Brasileiro", mas desde que uma velha de 100 anos morreu no dia do seu aniversário, após um arrazoado que não percebi metade, perdi um bocado o entusiasmo... (`_^) Bom, quanto ao autor, não há muito tempo vi uma entrevista dele no Youtube, com a qual chorei a rir (e não era para rir). Algumas (más) impressões ficam assim, um bocado coladas à nossa pele...
Mas se tu gostaste, hei-de dar uma voltinha nalgum dos livros dele que tenho por cá, à excepção da "Exortação aos crocodilos", que se o meu husband não percebeu nem o tema, não me parece que vá entender melhor que ele...
Beijocas e bom fim de semana!
Eu sei que ficas com dentes de lobo ante os títulos dele, JPC. `_^
Bom princípio de tudo para ti também.
Ainda hoje li no Inimigo Público, Teté, unha frase que vem a calhar: "As leis portuguesas são com um romance do António Lobo Antunes, cada um entende nelas o que quiser".
Pois, já ouvi muita coisa dele, num sentido e noutro, mas gosto do que diz na entrevista e gostei deste seu primeiro livro. Também não pretendo aqui animar ninguém a ler nada. Até porque gosto de relatos sem argumento se a maneira de escrever me prende.
Bom fim-de, menina!
Concordo consigo no de Âncora Praia: talvez de muito idosos coincidamos lá, nas esplanadas diante do passeio marítimo, a actualizarmos os respectivos blogues cada um na sua mesa. É um lugar perfeito para os invernos, com esses peixes à grelha que são para morrer de gosto.
Howard's End é nome da vossa terra. Tanta gente a ler e a escrever nas bucólicas margens do Minho. Admito, pronto, tenho inveja.
Já agora, vou ali à estante buscar o LA.
Gostei dessa de "muito" idosos, Kaplan: idosos sem muito já somos, hihihi! E sabe o quê. Ontem que estava norte, em Âncora, como está resguardada, estava uma temperatura até quente de mais. Já estive e pensar em trocar as nevoeiros do Minho (e nesse caso já lhe reservada uma cadeira na minha mesa), mas não sei aguentaria as invasões estivais.
Ontem repeti visita, Oscar, e foi mesmo de Howard`s End, em conversa animada com um homem que repetia -sem eu lhe perguntar!- que as duas mulheres que o acompanhavam eram filhas dele. Era engraçado o gajo.
Não tenhas inveja. Estas-me muito saudoso. Pega no M pelas orelhas e venham morar cá. Em noites de lua cheia, no porto d'A Guarda sente-se o o batucar dos tambores na espuma das ondas que quebram no cais e enxergam-se cintilantes ao longe os olhos das onças de caçaria (e sem fumar nada).
Depois, num quarteto de esplanada, podemos recitar poemas como quem fala do tempo e interpretar uma fuga em dó menor sobre as prosas do ALA.
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