sábado, 30 de outubro de 2010

Afinal era só para dizer que hoje me trataram por...

As folhas nas vinhas estavam vermelhas, ainda não ocras. Viam-se bem da auto-estrada e sugeriam outonos que nunca viriam como eu gostaria que viessem. Tive vontade de encostar para tirar umas fotografias, retê-las num rectângulo como se fossem ramos de camélia apanhados um por um, os mais verdes, a enfeitar a pedra, escura ―nada se quer saber daqueles outros amarelinhos, carentes de magnésio ou ferro, como a gente, às vezes, de afecto. Mas ninguém que tenha juízo pára na berma da auto-estrada a tirar fotografias de vinhas vermelhas, nem verdes, nem sequer de vinhas sem folhas.

Por isso continuei caminho, desatenta já ao chamado da paisagem, centrados os olhos nas linhas brancas que delimitam, centrado o pensamento entre a memória e o nunca, assim também delimitado. Estreito. Até que saí.

Numa dada altura sai-se sempre. Até porque é preciso sair para entrar num mundo diferente ou no anterior que já não será o mesmo. Paguei a portagem, claro. Ninguém atravessa a fronteira do esquecimento se não levar a moeda na boca para o barqueiro. E então aconteceu o que ninguém esperava. Foi na rotunda. Mandaram parar e encostei, desliguei o aparelho de música onde tocavam cravos talvez de Bach e abri a janela ao guardinha:

―Bom dia. Tem os documentos, faz favor, os pessoais e os do carro?
―Tenho. Muito bom dia. Um momento. Ora, a carta de condução está aqui. Faz favor. E os documentos do carro...
―Mas afinal a menina é portuguesa ou é espanhola?

Diga-se de passagem que sorri e nem me pareceu a partir de aí que o céu fosse tão cinzento. Digo mais, abriu-se um clarão que durou até o início do regresso.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Caravel negro

Para o Marcelino Camacho










Sabes? Eu, que non entendo nada de economía, nin sequer da miña (tento apenas non escribir por riba da miñas posibilidades), creo, estou convencida, de que isto que agora nos acontece é unha confabulación perversa dos amos do diñeiro, paranoias miñas. Crise. Hai crise. Pero a crise non a provocaron os que nos vendían (ou deberei dicir antes “nos compraban con”?) unha ilusoria felicidade a prazos, un ídolo-boi de ouropel a prezo de ouro? Crise. Hai crise. Daquela imos todos facer o gran sacrificio do boi: choiar máis, gañar menos e repetir unha e outra vez a cantilena: aínda ben, aínda ben, aínda ben... Ollamos arredor: longas filas de persoas sen emprego, filas longas de persoas con fame. Aínda ben, eu teño aínda un salario que rebaixar, horas de traballo que aumentar, repetimos, obedientemente. É a crise.

E entón, imos recuar e perder dereitos laborais, eses que tanto sacrificio (e privación de liberdade) a ti e a túa familia custou ―e a tantos, a tantos sen nome.

Imos recuar, que hai crise e é preciso encher máis e máis os petos dos poderosos, en tanto o caravel vermelho se tinxe de breu.

Morrer será regresar ao punto de partida?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O sorriso da bolboreta

Non é imaxe, senón corpo que se procura nas saudades. Isto é: non se ve. Asómase tentando sorprender o espelho, pero o vidro cala sen revelar nada. Nada? Nada que interese, digo, a quen pretende desvendarse nel. Porén, os intereses poden ser creados. Xoán Lobo Vieira centra entón a vista nun punto e aparece ela, bolboreta arredor da luz da lámpada apagada nun sensentido de direccións ocultas, as cores abafadas, as asas que axitan o mundo (disque) e o silencio... Alguén reparou no silencio do voo das bolboretas, como non querendo alertar a morte tan próxima da súa presenza? Nisto matina XLV, porque sabe que a morte non distingue cores: a bolboreta no espelho esplende fábulas dun ollar incompleto.

Ao fundo está o cepillo de dentes, o tubo compañeiro, contraído, como unha cobra atropelada sobre o asfalto, mármore negro, sangue branco, espeso, espuma. E XLV sorrí, que aínda conserva para iso os dentes, todos, intactos e descarnados: limpeza bionecrolóxica. A borboleta confunde cepillo con flor e desenrola a trompa: absorbe o néctar mentolado e move as patas, repetidas veces, para as impregnar de pole-sarrio. Sae a voar pola fiestra fechada para iniciar a posta de ovos e o ocaso, mentres XLV continúa parado, pasmado, ante o espelho, imaxinando o sorriso que virado para fora, non obstante, vese por dentro apenas.

E o corpo? Non está senón deitado. Por iso o espello, nun plano (nin cóncavo nin convexo) superior , o desencontra. (Hai en toda horizontalidade terrestre unha curva-parábola á que ninguén, nin sequer durante o sono, foxe.) A bolboreta, en tanto, petrifícase en pé, repregadas por última vez a trompa (sabor ao mentol aínda) e as asas, libro que se fecha abertamente. XLV sae a camiñar pola mesma fiestra e apaña con delicadeza no ar a bolboreta morta, póusaa no ombro nu e sorrí.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Eu vinha (mais uma vez) falar da morte

Fiquei perplexa, indignada, irritada. Eu nem deveria falar nisto, mas é Portugal o primeiro que vejo cada manhã quando abro os olhos, o último que vejo à noite antes de os fechar. Dói, dói. Até parece que, desde Lisboa, Portugal é só Lisboa e, mercê que desde ali fazem, um pouquichinho do Porto, esse lugar ao norte, que não é norte, onde nem falar, ao que parece, se sabe. E falando em norte, eu vinha falar da morte. Norte foi o que faltou, no programa do Prós e Contras sobre o testamento vital. Sobre o testamento vital?!, disse. Não. Falou-se de muitas coisas, falou-se de morte ―alguns até de boca pequena, que dizia minha mãe, quer-se dizer de costas―, de testamento vital quase nada. E até as tentativas da Laura Santos, que desesperava na cadeira e nos gestos, em reencaminhar o debate encontraram a oposição da moderadora que achou, sem pudor, que o povinho não iria compreender pormenores. E eu que nem sou muito de defender povinhos porque sempre tive pânico de massas, tenho capacidade de discernir entre povinho e Zé Manel, o vizinho com nome, corpo e alma, que compreende, minha senhora, porque nunca viveu de costas à morte e tem medo não de morrer, mas de morrer como um cão, como morreram sempre os pobres (não tanto os cães...). Estamos a misturar alhos com cebolas, pois não? Cuidados paliativos com testamento vital?

O testamento vital é um acto de amor. De amor pelas pessoas que deveriam tomar decisões duríssimas por nós quando chegar o momento, se nós não as tomarmos antes por nós, previdentemente até quando estamos saudáveis, mens sana in corpore sano, não por força só quando estamos a ver-lhe o cu a coruja! E digo sempre "quando", não "se", reparem. O matiz é importante. Porque se eu, em plenas faculdades mentais (e não por força doente, muito menos terminal) tenho o direito e a possibilidade de decidir o tipo de tratamento que quero ou não quero que se me aplique quando chegar o momento da agonia (e eu, aqui, onde moro, albíssaras!, tenho essa possibilidade e esse direito) libero as pessoas que me querem (algumas há para aí, eu sei, acreditem) de tomá-la por mim.

Assinar um testamento vital, senhor jornalista da plateia, não é desistir de lutar quando o prognóstico me diz que posso lutar e até quando eu quero lutar mesmo que não mo diga, que a Medicina não é uma ciência adivinhatória, embora os avanços permitam, fora milagres, cálculos mais ou menos certos (e eu sei do que falo, quem me conhece sabe que sei). É antes deixar a morte entrar em mim em silêncio quando chegar o momento. É evitar sofrimento não só em quem assina mas também nas pessoas que nos querem e queremos, nos médicos que nos acompanharam (e enfermeiros, auxiliares, pessoal da limpeza e do serviço de comidas...)... e aqui é onde entra a necessidade dos cuidados paliativos, só aqui, e não tem tantos por centos.

Eu, digo-vos, isto é mesmo milagre, até tenho dias em que vou para a cama com respeito por algum padre.

E agora vou trabalhar, me desculpam, eu por mim ainda falava muito e mais nisto, mas não tenho pensado morrer ainda e é preciso fazer pela vidinha e por levantar o país, um país qualquer.

(O desabafo contra os salteadores de caminhos fica para outra hora.)

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Um minuto de silêncio

Vinte e cinco anos sobre o mármore estendidos, nenhum tapete a absorver o impacto do corpo que desmaia. Ferraram-lhe um tiro no pescoço, que sangra, esguicho vermelho, fonte de morte. E são oito e meia da manhã apenas. Os olhos mais fechados do que a ferida, talvez ainda encravada na pele a saudade dos lençóis, talvez o sabor do café com muito açúcar ou pão com tomate, azeitonas e sumo de laranja. O derradeiro pequeno-almoço sem apóstolos em volta. Morte em horário laboral. Um minuto institucional de silêncio. Luto doméstico sem horas certas.

domingo, 24 de outubro de 2010

Onde o mar começa



Começo onde acaba a tranquilidade
e termino onde o mar começa

Ademar Santos. Descansando do Futuro



Sei lá, talvez, era mesmo, afinal, de emoção que eu tremia e por isso não senti o frio a agarrar-me nos ossos.

E na sexta levarei contigo os ramos verdes de camélia ao breve território da espuma. Nenhuma flor.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Sobre a ignorância constroem-se poemas


Depois há quem diga, ai, e que tal, a doença fez-me melhor. Não, digo, a doença não fez nada ou faz, faz a gente mais lúcida, mais atenta ao espaço, às horas, aos gestos. A doença faz crescer dentes na alma e papilas gustativas nas plantas desarraigadas dos pés (também, por acaso, muitas nano-línguas nas retinas).



Nisto haverá discrepâncias. E eu talvez esteja errada, com certeza, não tenho dúvidas. Tenho é dias (e as suas noites, como se verá), mas bondades nenhumas. Ainda não compreendi porquê aprecio o olhar fundo dos meus cães e o pêlo, diferentes em cada um deles. De maneira simples, é só que...

Ando de coração quebrando-se-zinho, o peito em labaredas, as noites mal-dormidas (pois, nada novo). De aí. E receio ainda dos exames médicos. Se disserem, quando tiverem de dizer de aqui a uns tempos, minha senhora, isto afinal são gases, lá vai o lirismo (e a tragédia) por água abaixo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Espectador do infinito










Quem sustém a respiração antes de mergulhar o olhar ultrapassa a linha onde (não) termina o oceano.

E regressa com peixes de coral, borboletas marinhas e flores de sal e espuma a transbordar as algibeiras.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Razões










E um livro na mochila.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Negócio de futuro

Procuram-se delegacias em Portugal (continente e ilhas) para a distribuição e venda às portas de escolas, centros de lazer e saúde a preços sem concôrrencia de sumos, néctares e leitinhos com chocolate. Material de contrabando de primeira qualidade. Elevados rendimentos garantidos.

E... vive la France!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Proba superada










Unha vez iniciado o ascenso pola escaleira empinada e estreita xa non é posible recuar. Chégase a unha porta, tócase o timbre e accédese a través dun corredor psicoquimicamente interminable a unha sala en exceso iluminada: os rostros pálidos, as mans inquietas, renxer de almas coma grilos no final do verán. Son oito cadeiras baixo o fío musical que imita un tendedeiro de punta a punta do silencio finxido, o rapaz entretense nunha revista de viaxes, o home conta os cabelos que lle caen ao chan, a muller devora as uñas e un manual de matemática aplicada a partes iguais, a meniña invisible chora inaudita nun canto. Rexístrase tamén unha alfombra de tons laranxas, cadros con imaxes do deserto (fermosos), unha colección de helicópteros e avións en miniatura protexidos en vitrinas contra o po e os dedos, un calefactor apagado, cinco lámpadas no teito, un revisteiro, unha mesa de vidro e aceiro cromado, un centro de mesa laranxa no centro da mesa, dúas plantas, o recordo duns ollos ferrado con catro cravos dolorosos ao maxín... No vidro da ventá, sobre o remedo decimonónico de farol e as pólas prisioneiras dos negundos que o vento axita, debúxase unha voz vestida de branco.

Hai unha cadeira reclinable reclinada, a luz que fecha os ollos e abre a boca. A entrega. Un vaso e auga, un pano de papel, unha cita para dentro de seis meses. E baixar voando as escaleiras. Tampouco paguei desta.

domingo, 17 de outubro de 2010

E depois?










A gente ―tem dias― descobre-se à espera (à espreita) da leitura definitiva: aquela que permitisse pôr fim a todas as leituras, pôr fim.

Sumir.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

É o país!

Notou a humidade no pé esquerdo e sobresaltouse. Pousou o dereito, mollóuselle tamén. Ósperas, a casa alagada. Abrasoulle unha punzada o peito. Espertou de vez. Prendeu a luz. Unha lámina de auga lamacenta cubría o sollado. Raio de canalizacións! E tiña que saír escopeteado ao choio, era tardísimo. Nin café, de pronto, lle apeteceu. Subiu a persiana. Alborexaba xa, o ceo víase limpo, nitidamente recortados os montes ao lonxe. Presentíase vento norte na transparencia do ar, un frío lixeiro. Entreabriu a ventá para confirmalo e confirmouno. Nin unha nube. Un arreguizo, coma unha trallada sutil, na espiña. Foi para o baño chapuzando. Chof, chof. Polo sumidoiro da ducha cantaba de bico en alto un perú sobrio, agónico, gluglú-gluglú, un borboroto de manancial case idílico, non fose o fedor á cloaca que lle torceu o nariz. Do resto, a casa era un silencio de paxaros mortos que lle lembrou o enmudecemento insólito na parede. Estremeceu por segunda vez. Virouse á procura da hora exacta no reloxo da sala. O péndulo estático en equilibrio diagonal calaba o tic-tac, os punteiros diríanse, porque estaban mesmo, suspensos tras o vidro embazado. Correu ao teléfono enchoupando os baixos do pixama. Corría e renegaba. Renegaba e bastante. Marcou o número do fontaneiro. Comunicando, comunicando. Nin contestador para urxencias! Merda, merda, merda! O Pedro, o Pedro. O Pedro estaba no paro. Chamo polo Pedro, igual mo soluciona el.

―Diga?
―Perdoa, Pedro, xa sei que é moi cedo. Son o Xocas. Esperteite? É que teño a casa inundada. Algún cano que rebentou, que sei eu! E teño que ir para o choio. Non podías...?
―Non che rebentou nada aí, Xocas. Non é a túa casa. A min chégame a auga ao pescozo... Deume por abrir a porta da rúa e... ―falaba coa calma de quen se deixa afogar, rendido.
―O que?
―Que non abras a porta da rúa, Xocas. Que poñas farrapos diante da entrada. Non é a túa casa. É por todas as partes. Vén de aí de fóra. Está todo a meter auga. É o país!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A mochila inocente

A miña mochila vai comigo, díxenlle. Se ela non entra, non entro eu. O garda de seguridade mirábame com cara de risa, rebentando as costuras do uniforme paramilitar. Se tiveses correr atrás de min, ría eu por dentro, non me collías. Douche unha ficha para a consigna, ofreceume. Non quero fichas, quero entrar coa miña mochila. Quero presunción de inocencia para min e a miña mochila se vou deixar aquí diñeiro. Non teño por que deixar fóra a mochila e exporme a que ma rouben. Non teño porque entrar aquí coa carteira na man. Hai señoras por aí con bolsos moito meirandes ca a miña mochila, e sinalei para unha cun bolso onde cabía media tenda. Son ordes. Ordes estúpidas. Quero falar co encargado, quero pór unha reclamación. Son ordes de arriba, repetiume o encargado. Ordes estúpidas. Prexuízos arrevesados. Asentiu. Menos mal. O encargado foi falar cun xefe. Matinei: isto non é un servizo público no que estea obrigada a entrar. Nada me obriga a mercar nada aquí. Dille ao encargado, avisei a unha empregada entón, que non perdo medio segundo máis, sobran tendas onde comprar, poucas as grazas. Marchei.

Cando estaba no estacionamento xa co casco posto, apareceu o encargado. Que volvas, que falei cos xefes, que podes pasar coa mochila. Non paso, non. Hoxe paso e o próximo día terei o mesmo problema. O encargado asentiu comprensivo. Unha macrotenda de deportes e non deixan entrar con mochila! E a xente traga. Se chego a ter faccións árabes e un acento gutural de vogais fechadas igual saltaban as alarmas antiterrorismo e destas horas estaba cunha manda de paus ao lombo.

__________________
Non vou citar o nome da tenda porque non lle quero facer propaganda, nin boa nin mala. Pero digamos que empeza por d acaba por n e ten un th polo medio.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

De violências verbais

[Repórter TVI: O céu visto da terra, de Ana Leal]






Escultura de Buciños 
Morto pela sua própria sombra?


Não gosto de censurar o que acontece em terras em que não moro, mas por vezes desata-se uma revolta cá nas tripas de moi même pelo vejo e ouço que nem sempre dá para um poema, antes dá para fazer abrolhar em mim reacções duma brutalidade em que não me reconheço. Verbi gratia, ontem ouvi num programa de televisão falar uma senhora ministra da Ignorância e a Insensibilidade com tal arrogância e desprezo pela dor, pelos sentimentos, pela vida e a morte das pessoas ―pessoas com rosto, pessoas com lágrimas secas sobre a pele seca― que me veio aos dedos uma vontade sinistra de se fecharem em punho, um desejo do punho de se transformar em trompada contra a fuça da senhora, uma trompada única e contundente que lhe partisse o nariz e lhe escachasse os óculos, pelo prazer de ver, depois, o sangue a rebentar-lhe pela boca dentro e o queixo abaixo e os vidros estilhaçadinhos espetados nos olhos inúteis dela... sem anestesia.

domingo, 10 de outubro de 2010

Là vai o verão...














Em Moledo, 9 de outubro de 2010
(Eu disse-vos que adoro o outono?)

sábado, 9 de outubro de 2010

E a luz agora é da tua cidade?

Leio algures que Cidadeabertaaomar tem uma luz invulgar ou coisa do género, do género extraordinário, dia sim dia não. Que ontem, que era dia sim, na hora do entardecer a tal cidade era dona absoluta e senhora duma luz laranja não de artificial poste que para si quiseram as hecatombes e os juízos finais com redobre de tímpanos e pífaros, antes resultado do seu magnético engodo (engasgei no vaidosismo) para os fenómenos lumínicos exclusivos. Ai tinha? E então isto que cá havia pelas mesmas horas a me amarelecer nos olhos e nos carvalhos, nos azevinhos (em angular menage à trois de duas por um), nos bordos vários e no desacompanhado magnólio, no zimbro, no sobreiro, na figueira-da-índia-galega, nas ameixeiras e nos mirabéis, nas macieiras e nas pereiras (as autóctonas e a japonesa já também raiana), na cerejeira, na romãzeira (que tem cinco romãs primogénitas amadurecendo), nos liquidâmbares e nas gardénias, nos hibiscos, nos buxos, nas roseiras, em saramagos e noutras muitas e adversas-diversas ervas humílimas (vítimas de anonimato pela minha ignorância aprendiz), no monte da Pena, no do Cervo e no do Meio-Dia, na Cabra Fanada e no Ninho do Corvo e, também, no canto emudecido do melro e nos cagalhões dos cães... isto, pergunto, foi surripiado à supradita? Aiué...

Mágoa da minha imperícia infotográfica ou agora tinha eu aqui alguma para vos mostrar, sem photoshopismos, como é que a luz é do mundo-universo e não património dos urbanizados olhares seduzidos. Mágoa ou aiué...

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

“Testamento vital” do PS: só para pessoas já doentes?

Por Laura Ferreira dos Santos
Sexta-feira, 08 de Outubro de 2010
Opinião

A experiência holandesa diz-nos que, com a ajuda médica, os “testamentos vitais” não melhoram significativamente

Quando muitos esperariam que, depois das críticas ao projecto do PS de Maio de 2009 que, entre outras coisas, legalizaria a elaboração de Declarações Antecipadas de Vontade (DAV), o partido enveredasse por um projecto diferente, apenas dedicado a essas directivas ou ao chamado “testamento vital”, acaba agora por nos revelar um projecto quase idêntico. Assim, mais uma vez, dos 23 artigos dedicados aos Direitos dos doentes e ao consentimento informado, apenas seis têm que ver com as ditas DAV.

Detenhamo-nos no n.º 5 do art. 13.º: “A eficácia vinculativa da declaração antecipada depende, designadamente, do grau de conhecimento que o outorgante tinha da natureza da sua doença e da sua evolução; do grau de participação de um médico na aquisição desta informação; do rigor com que são descritos os métodos terapêuticos que se pretendem recusar ou aceitar; da data da sua redacção; e das demais circunstâncias que permitam avaliar o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade”.

Já li outras legislações sobre este assunto, mas nada que se equipare a estas exigências, exceptuando a legislação austríaca (de 2006), país em que a classe médica possui um estatuto social intocável.

Algumas considerações.
A) Qualquer cidadão capaz deve poder efectuar uma DAV, independentemente do seu estado de saúde. Nesse caso, qual a necessidade de exigir que evidencie (como?) o grau de conhecimento da sua doença? E se não está doente? B) Embora, idealmente, se pudesse pensar que a DAV feita com a ajuda de um médico melhoraria a sua qualidade, a experiência holandesa diz-nos que, com essa ajuda, as DAV não melhoram significativamente: como até os médicos holandeses, tidos por pouco parentalistas, não desejam ver-se mais tarde vinculados a uma DAV, não investem muito na sua elaboração; e como tão-pouco querem um dia sentir-se “estorvados” por um procurador de cuidados de saúde, tão-pouco fazem sentir ao utente a necessidade de o nomear. Por outro lado, o Código Deontológico dos Médicos portugueses prevê, no seu art.º 49º, que à recusa informada de tratamento por parte do doente pode o médico responder com a recusa de continuação de cuidados, não se falando, ao longo do código, da necessidade de concertar sempre com o doente planos terapêuticos alternativos. É a estes médicos, tão mal preparados para aceitarem a recusa de um tratamento, que se vai pedir que ajudem a elaborar uma listagem que é sobretudo de recusas? Não se vê o constrangimento em que se coloca o cidadão? E quantos portugueses têm médico de família? C) Para além de provar o grau de conhecimento que tenho da natureza da minha suposta doença, para fazer uma DAV vinculativa tenho também de provar com que grau de convicção a fiz. Como? Há “convictómetros”? Vou estar mais uma vez dependente de um médico? Do Ministério Público? Porquê este “encarniçamento hermenêutico” infantilizante e policial? D) Deve-se dizer claramente se uma DAV é válida até à morte ou tem de ser renovada com uma periodicidade fixa, não deixar isso ao livre arbitro de um médico. E) Para ajudar a identificar e a pensar no que se recusa ou não, e em que situações clínicas, essas situações e respectivos tratamentos devem estar discriminados (necessidade de formulários bem feitos, como os da Andaluzia).

Como já escrevi, o “testamento vital” deve ser instrumento de uma democracia maior no domínio da defesa das convicções pessoais no âmbito da saúde. Pelas limitações que apontei, não vejo como este projecto possa cumprir esse objectivo.

Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN (laura.laura@mail.telepac.pt)

Sudoeste










Há ao fundo uma luz que reflecte espelhos. Vento quente. Alguns pingos (de chuva). Uma música que vai e vem desde o infinito à janela, como dançando ao outro ritmo. É um silêncio invulgar este, construído sobre murmúrios e fragrâncias, sobre tons cinzentos e verdes, pardacentos alguns já, e o sal que se intui.

Há um tapete de nuvens mágicas tecidas na luz a deslizar. Viajo nele.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Vale tingido de vermelho










Porque tudo é sempre seguro ―garantem―, a gente acredita para enxotar mais um pouco a hora da morte prematura: a hora em que a caução esgota o prazo de validade e as palavras se revelam fraude: um falho humano, sempre humano: errare humanum est: o artíficio é humano: humana a ambição, a exploração, a bondade.

Eis o preço na segunda-feira: dique, ruptura, vazamento, barro, sangue: silêncio.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Negocio espiritual

Alúgase balcón por quiñentos ouros. Diñeiro negro en troca de vistas brancas, os ollos-espello da alma. Inclúese dereito a cama e almorzo con café e pastas (competencia desleal, chámase, á hostelería). E auga fresca a discreción (en pleno novembro, fresca, digo). Varanda para cinco ou seis persoas (carga máxima aproximada?). Negociable.

____________
Só para evitar os mal-entendidos do costume: Não sou eu quem tem varanda com vistas ao papa. Foi na rádio que ouvi o anúncio. Tenho de explicar tudo sempre.

Náufragos em terra










A carrinha como caixão colectivo, metaforicamente, transporte de cadáveres que se pensam vivos. O asfalto novíssimo da estrada tingiu-se de vermelho (sic). Ouvem-se sirenes. O sangue encardido que os bombeiros retiram do asfalto novíssimo. Detêm-se os curiosos na berma, os curiosos!, os não-mortos ainda, a satisfação por dentro (não fomos nós desta, não calhou a nós, isto não é connosco, jamais, nós somos passageiros noutra viagem, nós-outros). Traziam, diz-que, sal nos lábios, um cinzento-azul-verde de ilhas ao longe urdido nos olhos e cansaço. Em casa, há quem aguarde ainda a ensaiar o abraço, o beijo. Mas o quarto vazio já pressente a solidão e os gritos. A cama enorme. A noite mais longa. A voz pequena que interroga. O crucifixo castigado. O crucifixo apertado contra o peito. A raiva. O desespero. Corpos partidos, cortados, os dos vivos. Nenhum mar em que deitar a culpa. O sono. O excesso de velocidade a nenhures. A vida.

(O oceano devolve os cadáveres que não quer para si.)

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Intermitencias na sala


NO antes, a sala é a espera nun abanar de toses estereofónicas e voces caladas, case sacrílegas ás veces que se elevan sobre o sinal sonoro do silencio estrito, violando as escrituras, as leituras, olladas espetadas no chan coma cravos enferruxados de novo.

A cadeira é o sostén dos minutos.

No despois, a sala convértese en pasaxe, o corredor lento, un algo menos de hemoglobina, un algo máis de triglicéridos e colesterol, a conseguinte batería de análises, a extraordinaria cita para cardioloxía, as vísceras no lugar do costume aínda: o fígado inchado, a progresiva redución do cerebro descompasado do ritmo impertinente dos latexos.

A cadeira desocupada afástase.

domingo, 3 de outubro de 2010

Fiat lux!










ABRI os olhos para pegar num dia ave que de lá de fora me apagasse a noite, a noite réptil que de cá dentro me rasteja. Havendo claridade lá fora, julgava eu, também não seria tudo escuridão cá dentro. Julgava.

(Para entorpecer a fusão entre o de dentro e o de fora, ainda bem, inventaram-me a lâmpada incandescente.)

sábado, 2 de outubro de 2010

Algunhas maneiras dolorosas de compartir a beleza do mundo. Ensaio sobre a perversión










HAI quen experimenta pracer en arrancar unha flor ―das que medran en despreocupación crecente à beira do camiño, ofrecendo o néctar alimenticio á bichería que, en troca, espalla os xermes da descendencia potencial na veciñanza, en tanto soa ao fondo moito e etéreo chilrar de paxaros― co propósito, romanticamente canónico, de agasallar un amor de morte improrrogable.

Alguns, coma quen di, agoan, deseño de coitelo a man alzada, perante o inminente sacrificio da tenrura deliciosa dunha vitela (coellos e pitos ou xabarís novos valen tamén, só que coas multiplicacións mesiánicas consoantes) ―os ollos grandes, negros, a esculcar no verde prado calquera en que pasta mentres abanea os que xa nunca han ser tetos xenerosos, os cornos a abrollar contra o amencer mesto de neboeiro― para celebrar o que se di unha churrascada cos amigos, acompañada de viño (tinto) a esgalla, pan, cachelos e mais o cheiro ao fume que se ha de apegar na roupa, tan repugnante á mañá seguinte.

Outros gozan, en fin, insensibles aos efectos espectacularmente negativos que causan sobre terceiras partes tanto vivas coma inertes ao participaren en excursións masivas que cabalgan monumentos e museos ou paisaxes, e quebran a límpida sonoridade do espazo mediante exclamacións orais prescindibles, puntuadas de ais e ós, coma láminas de vidro escachando e ferintes contra o decorado.

Eu, porén, sei que acadaría unha éxtase case agónica se os dedos me cumprisen unha aspiración sinistra das que se queren inconfesas (quede entre nós, logo): o modelado dun poema sublime en forma de carta envenenada que na última liña ou verso provoque o óbito fulminante da paixón. Que bonito é soñar...

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Na véspera da estrea a modo de parabéns

Estrea de Limpeza de Sangue (o sangue fai ruído)
Sábado, 2 de Outubro · 20:30 - 22:30
Pazo da Cultura de Narón


SEI que lle debera desexar moita merda para o choio de mañá, pero à parte de noxenta considero a expresión desfasada, visto que xa nin na aldea vai ninguén en coche de cabalos ao teatro. Desexarlle moito dióxido de carbono sería mais axeitado pero vén sendo pouco ecoloxicamente correcto. E como a sorte, á parte de descartada ―disque a boa concita a mala, nun paradoxo dramático―, eu creo que é cousa do azar (isto é, primitivas e loterías afíns, que non son de desprezar, ollo) e non produto do esforzo e da vontade, mándolle por vía blogoglobeira directa un abrazo de lle estrullar os osiños todos e uns aplausos que lle estoupen os tímpanos, don Rubén Ruibal...

Mas as plumas uma a uma...










Contar carneiros não! Nunca ―disse categoricamente a doutora Teresa Paiva, especialista em sono e a falta dele, num programa nocturno da Antena 3.

EU quando (não) durmo tenho um ar de garça ferida até no pescoço ―que foi, agora nem parece, longo de tanto o esticar o orgulho. Penseis nada pela vossa conta, meus queridos, que já vos vou conhecendo, que haja aqui alguma poesia. Garanto-vos que não há nas noites mal dormidas poesia nenhuma. Há é chatice e alguma prosa. Mas dizia eu que tenho quando (não) durmo o ar contraído de quem sofre e sinto ao fundo de mim o galo que esgarça os músculos num relâmpago lento e intermitente extraviando o sono. Aparece-me aí desenhada na boca uma dor que não se percebe de fora e em cada osso há carne que se escinde e sangue plúmbeo e agulhas, agulhas que davam para vacinar contra a influenza, nos seus vários subtipos, todos os outubros.

Quando (não) durmo, eu não conto carneiros nunca. Conto as plumas que perco em cada bater das asas partidas contra o chão. Poesia, uma ova!