Ao ver a Lima no teu blogue lembrei-me logo de uma cadelinha que eu tive em Luanda...
Manoel Carlos
Pediu-me para escrever esta historinha —para lhe poupar lágrimas, disse ele— de quem foi a sua paixão e a sua tristeza, e eu escrevo com as palavras e a alma dele, com os dedos meus entintados nas águas do mar de Luanda, que são também as nossas.
Contou com a voz ténue de quem venera os silêncios que aparecera nem sabia como, pequeninha ela, na sua vida, caída dum lugar que fica além das lembranças, onde os tentáculos da memória se tornam fios no lusco-fusco. Bem que há donos que escolhem cão e cães que escolhem dono, a Babalú elegeu o Manoel Carlos e de troco ele adoptou-a, para de ali em diante fazerem vida a dois, companheiros que se entendem olhos nos olhos e no contacto dum corpo encostado a outro, em harmonia de fábula, como os contos de animais que falam com mais juízo do que as pessoas. Tanto era assim que por vezes o Manoel Carlos ficava atento à boca dela, aguardando que exprimisse as coisas lindas que o olhar dela lhe muximava.
Ião juntos a toda a parte. Quando ele entrava ao trabalho, ela ficava sossegada no carro a cochilar no banco de trás, a acumular forças para se jogar num pulo ao rosto dele e cobri-lo de beijos, como a criança que se atira aos braços da mãe após uma ausência de minutos que pareceram horas, como a namorada recebe o namorado que chegou de comboio num dia frio de inverno. Nas tertúlias com os amigos, a Babalú era uma mais, e quando depois de andar à gandaia, chegava o momento de espairecer a ressaca, deitava-se ao lado dele na praia, sem deixar ninguém aproximar, coma um anjo sem céu nem asas, marcando o limite das confianças a dois metros.
Mas uma noite —sempre há uma noite nos contos que chega funesta, tal como na vida há dias, algum dia, que se perdem no calendário— em que não a levou com ele, no regresso à casa, encontrou a mãe à espera, mensageiro triste de novas que ninguém quer dar, mas que no fim foi dizendo:
—A Babalú foi atropelada e está gemendo no teu quarto.
Não me contou o Manoel Carlos o quanto lhe pesava o coração, convertido em punho que bate no peito na pungência do remorso que ecoa: “Porquê eu não te levei comigo?”. Não, contou apenas do olhar diferente com que o recebeu, como pegou nela ao colo, como a abraçou com o amor todo —grande como é sempre o amor— que lhe tinha. E ela, que aguentara até esse momento para se despedir, balançou leve a cauda e no esforço deixou desfalecer a cabecinha e escapar um delicado xaxualho de xau-fui no derradeiro alento.
24 comentários:
E ele não contou esta história no blogue?
É sempre uma tristeza quando nos morre um animal a quem estamos afeiçoados.
Beijocas, Sun!
Dígocho en galego pois aínda que me costou entender o texto en ¿portugués, non? fixéchesme chorar!!! Triste a historia, pero tes un xeito de escribila que fas que sexa fermosa...
Perdón por mi gallego "castrapo". Es lo que tiene no ser gallega, jejeje. Precioso relato.
Besos
Oi, Teté, espero que ele conte, porque sabe bem fazer. Afinal, o único que fiz foi me apropriar das suas palavras.
Jinhos
Leticia, nunca pidas perdón por falar como sabes, e menos aquí, onde tanta condescendencia se ten co meu portugués de servizos mínimos.
Bicos
Deixa-me enxugar a lagrimita teimosa...
Fez-me lembrar o meu canito Jupi, Pité para os amigos (o nome era Júpiter). Levou-o novo, a leishmaniose, esse anjo da morte. O canito já definhava, mas esperou que o meu pai chegasse a casa para dele se despedir. Eu já não cheguei a tempo, mas secalhar ainda bem (tinha dez anos...). Tadinho do meu Jupi. :(
http://es.youtube.com/watch?v=TzGL_CLojP8
História triste...mas escrita com palavras bonitas!
São assim os bichos, Van. Cá disse: "fora a alma e a figura são como as pessoas" e pode parecer brincadeira, mas não é.
Non conseguín ver, LM. Grazas pola intención pero teño un estómago delicado para accidentes.
Oi, Carlos, não pense que o abandonei. Passo pelo seu canto todos os dias e leio de princípio ao fim os seus posts. Preferi tornar leitora silenciosa. (`_^)
E eu que pensava que descartava as minhas lágrimas...
gostei da forma de referir a Babalú. Esses bichinhos merecem as mais sinceras palavras e os mais sinceros carinhos pois que, eles fazem tudo isso e muito mais por nós. Essa homenagem póstuma era só o que me faltava para me livrar dos remorsos de tê-la deixada só nessa noite...
Obrigado Sun por mim e pela Babalú
que às vezes imagino-a no céu dos animais...porque noutro é impossivel...
Beijos
Manoel Carlos
Manoel Carlos, já disse: a história foste tu quem contou e eu apenas me apropriei das tuas palavras e do teu sentimento. Não era preciso acrescentar "quase" mais nada, sendo esse "quase" o que tu não contaste e eu intuí.
Beijos
e dirá vde e a este que lle importa, pero digo eu... non vai contar que facia vde por luanda?
E como só tu sabes escrever e emocionar a quem te lê... :)
Beijoooooooo de Sexta (sábado, vá):D
Kaplan, abofé, que máis lle ten a vostede o que facía ou deixei de facer en Luanda? Mas voullo contar se me garda o segredo: soñar.
Acho, Tá-se bem!, que vou ter de oferecer lenços aos leitores do Cabaré que não é. (`_^)
Jocas de sábado chuvoso e ventoso!
Moi linda, moi tenra, moi emocionante, Sun Iou Miou.
¡Que nos vas partir o corazón!
Sigrid
Non hai problema, Sigrid, sempre nos quedan os transplantes.
...o mundo continua triste.
Muito triste.
Que pena!
Ou não.
...eu também, para empatar, para 'tablas'...
Arre!
Já nem o J&B vale merda nenhuma perante tanto cinzentismo...
Xodame-se!
Acho que vou ter de praticar mais hóquei, Anónimozangarrambiomerda (Manda caralho!, foste arranjar um nome complicado, que fica entalado na garganta como a merda nos sapatos), e passar menos tempo a dez centímetros baixo terra.
Sun,
Os dois últimos comentários fizeram de uma historinha singela
de "inexistente" pureza, um cinzento próprio dos tomados pelo J&B e depois, de saída, a merda que se entalou nos sapatos feita aflição na tua garganta ou vice-versa...
Mas olha, para os sapatos tens bom remédio. Para a garganta, quem sabe pudesses te livrar pelo anonimato...
Mas parabéns, a Babalú, foi realmente badalada aqui!
Manoel Carlos
Manoel Carlos, agora sim que não estou a perceber nada, e todas estas confusões nem quero saber o que me lembram.
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