Este texto é fragmento duma
carta que escrevi em tempos.
Falar em caça sempre me lembra um sucedido. Tenho um tio de quem muito gosto, lá em Castela, irmão único de minha mãe. Ele é —era, agora já não— caçador, de caça menor (dizia que era incapaz de matar um bicho grande, com aqueles olhos de pessoa a mirar para a gente). Com ele aprendi a querer os cães, eu treinava-os com bolas feitas de papel de jornal velho e esparadrapo (não sei como se diz em português, essa fita adesiva que vendem nas farmácias para colar as vendas, antes era de pano, agora de papel, e que na minha família materna é tudo só farmacêuticos). Um dia pedi-lhe para o acompanhar. Madrugámos muito e lá fomos a caminhar para os campos de trigo, entre os restolhos, tudo amarelo e um horizonte infinito onde descansar a vista (e como eu adoro aquela terra seca, onde um manancial ou uma árvore são prodígios de encantar e as nuvens parece que basta esticar um braço para alcança-las!). Estava feliz que nem sei explicar. Ia atrás dele, como me indicara, com cautela sempre, atenta. De pronto, à nossa frente saiu uma codorniz a voar: retive aquela imagem da ave pequenina e torpe a bater as asas, como se aparecesse num ecrã... e na metade deste, pum!, vi-a cair, a linha que traçava no ar rota, eu com o coração de criança encolhido, lágrimas quase a abrolhar... Mas engoli-as, não queria que o meu tio me visse a chorar, não o queria desiludir (como se ele não fosse perceber, he!). Só disse: "Tito (chamamos-lhe assim Tito, de tio), vou para o carro, que estou cansada. Espero ali". E lá esperei que ele voltasse —à sombra do Ondini bege e da tristeza—, que não demorou muito. Sei que lhe estraguei a manhã de caça, mas ele não me recriminou nada, nunca comentou, é bom de mais para isso.
E agora lembro que devo chama-lo, ver como ele está, que já vai velho e não deixam andar só agora de carro. Antes passava as tardes todas num pinheiral que tem imenso, não sei quantas hectares, às vezes incluso o dia inteiro ele lá, a plantar pinheiros, tirar água do poço para as aves, apanhar cogumelos... De caçar deixou há muito. Disse-me que tinha pena de matar os poucos animais que ainda restavam. Tenho de voltar e leva-lo, para competirmos, como outrora, a ver quem conhece mais nomes científicos de animais e plantas.
Telefonei-o há uma semana, estava de aniversário. Desta vez nem me perguntou pelos cães, quantos tens agora?, como era seu costume nos últimos tempos, a avidez instalada do monstro que lhe vai engolindo as lembranças. Percebi que não conseguia me reconhecer, mas na sua inseguridade sentia a minha voz como de alguém muito próximo. No final, na despedida disse-me:
—Então quando vens por cá? Precisamos muito de ti.
Soube aí que retrocedera à aqueles anos por um instante, que me reclamava para lhe ajudar na farmácia como sempre fazia durante as férias da escola.
—Já não tardo —respondi.
Tardei de mais. Chamaram para me avisar que está no hospital, grave. Vou ir, mas já sempre vai ser tarde.