sexta-feira, 28 de maio de 2010

Vai nas asas, nas asas!

―Foda-se, Maria! Quantos golos levas já? Que tens tu hoje?
―Raiva ―rosnei roendo as lágrimas nas entranhas.

Joguei a raiva nos golos, como se a baliza fosse a morte, a bola todos os poemas que ficaram na gaveta dos futuros inéditos. Depois tomei duche e jantei, sem te dizer, que estranho, não me doem as canelas, ou comi salada, maçã e iogurte, o teu olhar severo, tch-tch-tch, sem te perguntar, e agora, achas que vá de carro ou de mota?, nem responderes tu, vai nas asas, nas asas!

E fui nas asas. Nas asas para alcançar a lua no céu, Senhora da Hora, olho vazo amarelo, mordido pelas nuvens como o meu corpo pálido desfalecido, entre os dentes teus entregue. E num além escaso de ali, ali parei e vi, vivi, ouvi cacarejar a galinha que parece frango, ri, rimos, ristes, riram com ela à gargalhada, enquanto, enquanto de pescoço esticado, peito ondulante, trémula a crista, acompanhava o canto lírico cómico cáustico arquitec-tónico, contra uma sucessão incessante de edifícios hiperconstruídos ou hipogrifos de tijolo pedra betão-batom azulejos de loiça partida ou ira gaudiniana, redondezas arestas em aleatoriedade instavelmente equilibrada: a sustentável gravidade do absurdo. E eu o que? Eu rebentando os silêncios numa risada franca, o brilhozinho da felicidade breve, intervalo da raiva.

Depois a música. A música não são palavras. É batucar de sapatos, coiros, cordas perpendiculares em ângulo obtuso de contrabaixo e guitarra, é paus-baquetas, cascavéis ou castanholas cascateando-me nos sentidos, menos tristes, tronantes, mansos.

E mais tarde as palavras. As palavras são, às vezes, só às vezes, música a duas vozes requintada na quinta das quintas, a dita supradita: Antes a poesia que é a coisa mais séria. Seria?* Só se for de boca escancarada e fôlego no fole dos pulmões em alento feitiço. Assim sim, só.

O final é nunca mais, digo-te, mas é a mim que digo, pensa bem, ao escolheres lugar, mede medita, que os altifalantes são altiloqüentes, altíssonos numa harmonia que é de fábrica, bater de maça, ronco de sirene no nevoeiro, facho na voz, na luz, na luz, na voz, na luz serena, na voz sereia, na calma incerta, sou eu, altibaixos, amputada de ti recente, extrema extremidade fantasma, beijo-te contra o precipício e tu ainda me dizes, então vem, vem-te.

E fui, vim, vim-me, voltei, voltei nas asas das tuas interjeições rotundas, radicais, reverberantes... Só não houve sms que enviar-te, cheguei nem não cheguei, que já não lhe é preciso ao teu descanso.

____________
*Alexandre O'Neill, "Amigos Pensados: Vate 65"

12 comentários:

Kapikua disse...

Li o que escreveste no desassossego...sabes que "palavra" tenho para validação anti-spam?

CRIZE

Assim, com Z e tudo para me foder ainda mais o sistema nervoso!


Deixo-te um beijo GRANDE e desculpa a parvoíce! Foi só a frustrada tentativa de fazer sorrir um coração que chora...

Sun Iou Miou disse...

Pois, fizeste-me sorrir, Kapik, não há "crize". ;)

Beijo desconstrangedor do sistema nervoso!

Jonas disse...

hehehe...

Sun Iou Miou disse...

Ando a experimentar exorcismos, Jonasito.
(Eu sou mais hihihi!)

João Paulo Cardoso disse...

Entontecedoramente belo.
Mais para mais num dia assim.

Beijos.

Sun Iou Miou disse...

Entonteci? Entonteceste, ó JPC?

Beijo

Anónimo disse...

Ánimo, ría, sorría!
Aquí seguimos, con vde.

Sun Iou Miou disse...

Grazas, Kaplan. :)
Biquiños

La queue bleue disse...

Subscrevo, sem que sirva de precedente ;), o dito polo amigo Kaplan.

Força e biju :*

Sun Iou Miou disse...

Grazas, LQB, tamém sen que sirva de precedente ou de consecuente.

Tronkimazín disse...

Grazas Maria por ese anaco da tua dor transformado en tanta beleza, impresionante!

Sun Iou Miou disse...

Eu sei que es impresionable, Tronki. Tranqui. :)*