―Mas que tétrico!
Eu, que estava em ângulo bastante obtuso relativamente aos meus poetas (como a traduzi-los na sombra), alcei a vista num esvoaçar de pálpebras para tropeçar no cenho dela franzido e franzidos a condizer os lábios num o diminuto, que é um u. Respondi de sobrancelhas, no entanto, em arco solene, tenso, dardos nos íris de fingida incompreensão. Depois, leve virar do pescoço, encontrei o olhar impávido do poeta vidente, mais baixito ele, quase do meu tamanho e antiguidade, que apenas uns segundos antes se aproximara saltitando com uma proposta oral cuspida sem preâmbulos ao meu corpo surpreso.
―No fim, iremos beber um coiso ao...
―Não posso eu ―interrompi interceptando o contacto―. Amanhã cedo deverei estar em plena posse das minhas faculdades mentais (e físicas, obviamente) ―E esclareci a seguir―: Vou assinar os meus testamentos, o vital e o mortal.
―Mas que tétrico!
―Não é nada tétrico ―argumentei―. Tétrico seria não poder assinar testamentos. Assinar testamentos é prerrogativa de vivos, de vivos com consciência de sê-lo até um dia, vivos lúcidos com as funções da mente, ainda, em activo.
Havia bem tempo que me rondava pela má consciência a ideia de dar destino final aos meus resíduos sólidos humanos. De aí, na segunda-feira anterior aos factos acima descritos, levantei-me com o pé direito e o firme propósito (sem emenda) de marcar hora no notário, como quem pede consulta no dentista para unha limpeza dental profiláctica. Já no local, agendaram a minha causa para a sexta seguinte, e pelo prezo dum dois por dois (negócios que não têm crise e, consequentemente, não têm saldos), vista a boa disposição com que iria defender a minha dignidade de moritura (que é latinório composto dos vernáculos "moribunda" e "futura") no testamento vital (ou, melhor dizendo, declaração de vontades antecipadas), persuadiram-me a assumir no momento sempre inoportuno a condição de morta pouco chata, escriturando a partilha do legado imenso dos meus bens e males, móveis e imóveis, aos meus ricos herdeiros num testamento por força mortal.
Tétrico? Tétrico seria para os vivos que me iriam chorar, se os houver, terem de lidar com estas burocracias maçantes no dia em que.
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Fora isto, acho que "tétrico" é um esdrúxulo sublime.