terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Às voltas com o testamento vital (ainda) II. O artigo de Laura Ferreira dos Santos

Fracturas, compromissos e "sabotagens"
Por Laura Ferreira dos Santos
No Público. 3 de janeiro de 2011


O novo parecer do Conselho Nacional de Ética sobre o Testamento Vital

Em 2009, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) desaprovava o projecto de lei do PS que, entre outras coisas, versava sobre as Declarações Antecipadas de Vontade (DAV), construindo todo um parecer assente na desconfiança perante o princípio de autonomia. A este princípio opunha a "intimidade" moral e a confiança criada na relação médico-doente, a partilha da responsabilidade e o papel imprescindível da família na definição do que é melhor para a pessoa doente. A realidade que inspirara o projecto, dizia-se, fora a anglo-saxónica, com maior ênfase na autonomia, quando a nossa "realidade antropológica e cultural" é muito distante dela. Perante afirmações deste género, até apetecia perguntar aos relatores se, tendo sido a democracia uma "invenção" anglo-saxónica, seria também estranha à tradição do nosso país (para outros comentários, cf. Laura Santos, Testamento Vital, 2011).

Entretanto, muda a composição do CNECV, surgem novos projectos sobre as DAV e surge também um novo parecer do CNECV, discretamente, por entre os festejos natalícios. E, desta vez, o CNECV consegue transitar de uma ética sobretudo paternalista, inspirada no princípio hipocrático da beneficência e em certos preceitos cristãos camuflados - no fundo, o ser humano tem sempre a sua autonomia limitada por Deus e, aqui na terra, quem sabe o que é melhor para ele é o médico -, para uma ética secular não-canónica. Passagem pacífica? Quem ler os diversos textos agora disponíveis perceberá naquelas frases compactadas do Memorando (M), que começam de um modo e terminam estranhamente de outro, quantas fracturas e compromissos estão por trás do novo parecer. Seja como for, o novo parecer, e quem se bateu por ele, deve ser saudado pelo seu ênfase na liberdade e sentido de responsabilidade dos cidadãos. Rapidamente, e cingindo-me sobretudo ao parecer:

Autonomia. Apesar do que é dito no M, quando chegamos ao parecer o primado do princípio da autonomia resiste, embora se diga, compreensivelmente, que não pode ser de aplicação absoluta (pense-se, por ex., nas leis do país).

Importância. O parecer diz que as DAV são "um elemento de relevância máxima para o apuramento da vontade real da pessoa".

Narrativa biográfica. Para além das disposições escritas e/ou da designação de um procurador, o CNECV aconselha, na linha de bioeticistas recentes, a introduzir numa DAV uma "história de valores", que possibilite entender melhor as vontades dos incapazes, sobretudo quando as situações são complexas. Parabéns a quem pugnou por esta ideia.

O que se pode recusar? O M não limita as DAV às situações terminais, como o PSD ou o CDS. Há, dizem, o estado vegetativo persistente, as demências, as recusas das testemunhas de Jeová... Penso que, segundo o parecer, se pode recusar quase tudo, desde que não haja desconfianças do carácter genuíno da recusa (feita num exercício de autonomia prospectiva, claro).

Obstinação terapêutica. Depois de o M quase insinuar que as DAV são para resolver este problema, o parecer consegue "relembrar" que nem sequer é preciso uma DAV para recusar essa obstinação. Porém, na sua (só dele?) nota de imprensa, Miguel Oliveira da Silva diz que se pretende com as DAV "evitar a chamada obstinação terapêutica". Há aqui alguma tentativa de sabotagem?

Aconselhamento médico e carácter vinculativo. Estranhamente, o M, ao analisar os projectos, abstém-se de entrar neste ponto crucial - todos os partidos, com excepção do BE, faziam depender o carácter vinculativo de, pelo menos, haver aconselhamento médico forçado. No parecer, surge-nos algo que deve ter sido redigido com pinças: há o dever de os médicos informarem, "mas qualquer pessoa capaz pode optar por não querer ser informada", sem ser penalizada. O que se esperava que se dissesse é que as pessoas podem recolher informações junto de pessoas que não os médicos ou "equipas de saúde". Pois alguém entende que se faça uma DAV sem querer estar informado do que vai fazer e do que pretende? Quantos compromissos para chegar aqui? O que vão os partidos fazer com isto? Obrigar-nos a levar com a vinheta do médico em cima da nossa DAV, se a queremos vinculativa? O parecer não lhes parece dar razão.

Finalmente, apenas um pormenor humorístico: a conselheira Maria de Sousa deve andar tão impressionada com o fenómeno WikiLeaks que fez uma declaração a dizer que não podia aceitar a existência de um registo nacional de DAV em plataforma informática, pois nenhuma pode assegurar confidencialidade. Sugere que voltemos ao papel e lápis? Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN.

4 comentários:

Teté disse...

Bom, se bem entendi (e sim, é português escorreito, mas não estou a par destes pareceres e ainda menos das politiquices envolventes), o CNECV até melhorou a sua posição desde 2009.

Se as DAV surgem no seguimento de um princípio de autonomia e "têm relevância máxima" no apuramento da vontade real, já se está no bom caminho. Haverá excepções em casos limite, mas aparentemente nem sequer depende de aconselhamento médico obrigatório. Um mero pormenor, porque obviamente todos os declarantes já consultaram médicos anteriormente.

Quanto a não haver um registo nacional informático das DAV pessoais de cada um, suponho que é ridículo. A começar porque de início só meia dúzia de pessoas as devem fazer, não são 10, 5 ou 2 milhões delas. E assegurar a confidencialidade de quê? Se algum dia for necessário usar, os declarantes devem preferir que estejam acessíveis...

A minha dúvida é se muita gente vai entender o que está escrito neste artigo, dado o analfabetismo funcional vigente...

Se por acaso também eu não entendi o assunto, fazes-me o favor de me "puxar as orelhas", não é?

Anónimo disse...

Pode tentar ler o Parecer, pode ser que entenda: http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1293115760_Parecer%2059%20CNECV%202010%20DAV.pdf

Sun Iou Miou disse...

Não serei eu quem te puxe pelas orelhas, Teté. Obrigada pelo teu comentário reflexivo.

Quanto ao analfabetismo funcional... esse é outro problema, grave, mas que se pode aplicar a toda quanta decisão a gente tem de tomar.

Sun Iou Miou disse...

Obrigada pelo contributo, Anónimo.