"Eu já não temo a morte. Sou um homem livre".
Irmão Luc em Dos homens e os deuses.
Pedira um pingo ao balcão no café do hotel. Gosto de entrar ali. Tão asséptica a sala. Tanta luz. Quase ninguém ou ninguém. Ler qualquer coisa na espera. Se calhar até foi de aí que veio a boa disposição, do café, da espera, da luz. Sabia, aliás, que iria gostar do filme. O espírito. O canto-chão e a polifonia: sob um céu variável a estupidez assassina e o amor infindo a um não-ser que é todos os seres. Eu já pensei alguma vez, desta altura, que marchar era morrer, quando se habita na vida, mesmo que sejam de barbárie os sinais, tenebrosos, irracionais como o homem às vezes é mesmo no nome duma promessa talvez improvável. A insónia povoa a noite se o medo se instalou nas paredes internas do corpo e as rói, se a gente se fez rama para os pássaros pequeninos, cedro firme e sólido que aspira às alturas com as raízes em terra. Mas aprende-se a conjurar com a oração e o calor dum abraço colectivo o estrondo da águia impiedosa que paira e ameaça e defende o seu espaço próprio de terror... E na chuva, na paisagem, reconhece-se o caminho que se escolheu. Há uma derradeira ceia em que se partilha um vinho enquanto um cisne morre, o mais belo canto da paixão de amar, e transforma o sorriso em lágrimas.
Está no fim a neve, essa frialdade dos corações, essa beleza de postal em que se traça a esteira das mortes inúteis.
8 comentários:
A tua escrita é impressionante. Quando era mais novo, esforçava-me bastante para conseguir escrever em condições, e sempre fui um bocado frustrado nesse aspecto.
Ler-te é delicioso. ;)
Como é que sabias que Reynaldo Hahn era o amante de Proust?
Talvez então tenhas de chegar a velho como eu, melga, não a oficialmente velho, mas a velho mesmo. :)
(Garanto-te que estes quatro toques de pincel que eu rascunho custam-me um esforço grande.)
Agora vai ler o Eça, por exemplo, voltas e dizes o que é que é delicioso.
Non sabía nada, Ella. Só sei agora. Nunca me deu polas biografías. Estaba a buscar algo da Susan Graham, e encontrei esse poema do Victor Hugo, precioso, e con esa música do R. Hahn. Encantoume. :)
Já li, e é diferente.
Gosto da forma sublime como algumas pessoas conseguem transformar uma dissertação sobre o boi almiscarado da Colombia, numa ode à nossa língua.
Está bem, melga. Ante isso nada a dizer (o meu ego quando lhe convém fica mudo). :)
O texto está muito bom, embora eu pense que amar a paixão é uma redundância inútil, já que, quando o amor e a paixão se juntam, dá sempre esturro.
Pronto, já vi que ninguém viu o filme. Anónimo, essa paixão faz referência à paixão cristiã, a paixão de Cristo. E de aí o subtil -tão subtil que ninguém reparou, raism...- jogo de palavras. Mas também a paixão pelo amor aos outros. Enfim, coisas minhas que eu cá me entendo.
Esturro é que dá quando as lentilhas se queimam ao fundo da panela. :)
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