segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O país que eu sou (e outrossim, o corvo)

No fim da tarde saí a ventilar os olhos na penumbra. De porta fora, rachando o silêncio em electrocução única, senti no quintal vizinho corvo doméstico um a gaguejar canto de galo, canto truncado como as suas asas, dele do corvo. Quiçá lhe ia faltando luz para experimentações mais próprias de amanhecida ou colorido nas penas. Quiçá.

Depois foi nada. O corvo prisioneiro desistiu de namorar com galinhas fátuas e juntou-se à afonia absoluta de grilos e melros no lapso quase-invernal do lusco-fusco. Portanto, aconselhei-me a dissimular a desocupação auditiva ligando-me via auscultadores a uma emissora de rádio, séria, culta. Não me largou o eco do corvo.

Pés no caminho cedi ao piano que tocava a direcção dos compassos até que a sonata se extinguiu e uma voz humana entremeou na minha vadiagem pelo assédio sexual do corvo maneta ao serralho desdenhoso do galinheiro. "Os países que falam português...". Abalou-me a sentença. Nem segui o rumo do razoamento possível, atendendo só ao meu espanto inquieto: sempre acreditara que eram as pessoas que falavam línguas, e agora? País eu?!

Era eu país mesmo?! Cachecol meu ao vento, bandeira? Gemido, hino? Lágrimas, marés? Cílios em ondulação, vendavais? País? Este corpo? E se era, era ilha, arquipélago, península, terra de interior que é dizer sem mar? País com deserto até desprovido de oásis real (miragem é que nunca, nunca!, gritei) para solaz de camelos e aventureiros de filme? País tropical, árido, polar? Era país-continente ou país-aldeia? E de ser, seria república, ditadura dura ou branda, monarquia ou reino de taifas? Era estado, se fosse, autonómico ou federal? Era país de povo soberano ou colónia? E já agora, o meu povo, quem era o meu povo? Olhei para os dedos das mãos, que acenaram lealdades mascaradas pelas luvas; e para os pés nos antípodas de mim, obedientes ainda ao roteiro marcado. Perscrutei na querença do coração e ele respondeu com palpitações rítmicas. Admoestei, fazendo-me forte, o fígado, que porfia em ocupar mais abdómen do que lhe pertence. Os rins, porém, nem cessaram de depurar imundices, fieis lacaios mudos. Enclaustrados, os pulmões, ora inchavam ora amarfanhavam como foles de saudades a infundirem-me roufenho ânimo pela traqueia e o nariz outeirinho. E o estômago, pois, digeriu este despautério todo, tão deliciado ainda no chocolate com que o presenteei de tarde que nem um resmungar insolente arrotou. Mamas, quase cordilheiras; veias e artérias, capilares, vasos linfáticos..., os rios e ribeiros! Como é bom este país que sou, concluí, tão despoticamente esclarecida.

(Até que o cérebro, na função de governo oligárquico legítimo e sorrateiro, insinuou se o corvo vizinho, com os seus ensaios na fala dos galos, não era o fervor das galinhas que procurava, antes ansiava também ter língua para ser país. Como eu. Foi aí que começaram as hostilidades no bairro perante a desídia espicaçante das galinhas.)

8 comentários:

Kapikua disse...

se me arranjares a bata candidatar-me-ei a ser o teu ministro da administração interna :)

Sun Iou Miou disse...

Estava a precisar mais de um ministro de defesa, Kapik, que os interiores tenho-os bem geridos. Mas também há vaga na pasta de ministro de sanidade(s), com estetoscópio e bata branquíssima de oferta.

Kapikua disse...

estou nessa!

quando chegar altura de tomar posse avisa-me por favor.

beijo autodeterminado!

Sun Iou Miou disse...

"Posse", eis uma palavra com classe, Kapik, não aquela ambivalência do "evento". ;)

Rafeiro Perfumado disse...

Na ilha do Corvo fala-se português, será por isso?

Abracinho!

Sun Iou Miou disse...

Mas é a ilha que fala ou o Corvo, Raf? ;)

Teté disse...

Será um corvo ou urubus? Não sei porquê, é o que me parecem assim a esvoaçar sobre um país moribundo, enquanto aguardam o instante de lhes poderem bicar os ossos...

Beijocas!

ps - obrigada pela dica da autoria do cartoon! :)

Sun Iou Miou disse...

Os corvos também se alimentam de carniça, Teté, de maneira que... ;)

(A dica do desenho não foi minha. Eu li no comentário do Vício e só depois é que reconheci o estilo do A. Sabão.)