domingo, 1 de agosto de 2010

Artigo roubado, porque sim

Hoje apeteceu-me trazer aqui este artigo de opinião da Laura Ferreira dos Santos editado no jornal Público de 31 de Julho 2010

A beleza dos funerais laicos

Não é fácil fazer um funeral laico a norte do Porto. Falta de liberdade religiosa para os não-crentes?

Através dos media, tenho observado a beleza de alguns funerais laicos, como o de Saramago: os/as amigos/as e os/as estudiosos/as podem falar à vontade de aspectos da obra, do trabalho ou do carácter de quem morreu. A pessoa falecida tem direito ao seu nome, à sua biografia, a testemunhos sobre o melhor da sua vida. De funerais laicos muito mais discretos dizem-me que correm de modo semelhante. Ora, eu nunca vi acontecer isto num funeral religioso católico: quem morre é reduzido a um cadáver a enterrar, e não a uma pessoa, a uma tessitura de afectos, compromissos e paixões, por mais humilde que tenha sido a sua vida. De repente, deixa-se de se ser aquele homem ou mulher que os familiares e amigos recordam com afecto, e de que tantas histórias conhecem, para se ser apenas um "servo de Deus" (mas até Cristo disse: "Não vos chamo servos, mas amigos") que exemplifica a vulnerabilidade humana e serve para dizer que a vida terrestre é uma completa miséria. Mesmo quando dizem o nome do "servo", custa aos familiares e amigos ver como o padre mostra não saber ao certo onde o apontou. Afinal, aquele é um cadáver de quem não sabe nada, por que raio havia de ter um nome? O protocolo que rege os funerais católicos só diz que aquele corpo tem de ser enterrado com umas tantas orações e bênções, não fala de afectos nem de ternura. Afectos e ternura não se protocolam, logo não existem nas instituições que tanto amam os protocolos.

O meu único Irmão, com quem tinha um elo mágico, morreu-me abruptamente há pouco, apenas com 57 anos. Apesar de ele ser não-crente, quis fazer-lhe um funeral católico. Era como se, desse modo, tentasse acompanhá-lo a outras margens de ternura e serenidade. Ele dizia que, se houvesse deus, ao menos que fosse parecido com o meu, por isso achei que compreenderia, ou perdoaria, o meu gesto. Mas tive as minhas dificuldades. Sim, poder-se-ia fazer funeral católico por não-crente, mas, atenção, não por suicida; os alunos dele, que encheram a igreja, poderiam ler antes do final da missa um texto que tinham escrito em sua memória, mas o pároco não podia permitir que a missa fosse de "homenagem". Quanto a outro padre que concelebrou, os alunos estariam "riscados", eu é que disse peremptoriamente que já obtivera autorização para eles. E, sem entender que eu tivesse escolhido para o meu Irmão um caixão sem cruz, o pároco fez-me desejar fazer-lhe um funeral laico. Só que já não tinha tempo, e não é fácil fazer um funeral laico a norte do Porto. Falta de liberdade religiosa?

Estavam na igreja amigos/as que poderiam ter de facto ajudado naquela despedida tão abrupta, cada um falando de uma faceta do Ademar, que até era bem conhecido na cidade e que há anos editava o seu singular Abnóxio. A antiga directora do Mosteiro de Tibães pegou na sua urna, em memória de toda a luta que ele travara pelo mosteiro. Mas ficámos sobretudo a cumprir um protocolo. E foram os seus alunos a personalizar a cerimónia, num texto lido com pressa por causa da emoção e que a todos comoveu. Muitos desejaram bater palmas. Era a emoção contida que se queria manifestar, pelos alunos e pela despedida. Mas estava-se a cumprir um protocolo, e toda a gente se inibiu.

Alguns padres cultos portugueses desfazem-se em elogios a Gran Torino. Não entendo: Gran Torino abre com uma cerimónia de funeral em que, perante a homilia do jovem padre ingénuo, o actor Clint Eastwood exclama baixinho, com despeito: "Jesus!" Acharão estes padres cultos que procedem de modo muito diferente?

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Laura Ferreira dos Santos é docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN

8 comentários:

condado disse...

Xa quemamos algunhas igrexas mais, inxenuos de nos, deixamos escapar antes aos curas...

Sun Iou Miou disse...

Ándasme algo exaltado, Condado, que culpa teñen os edificios?

E, ademais, eu estou contra os incendios.

Tá-se bem! disse...

Como te entendo.. No funeral de uma pessoa que me era muito querida, o padre teve a indecência de insistir com os familiares chorosos (alguns acabados de chegar) que não fizessem barulho pois tinha que avançar com a cerimónia... Valha-nos Deus!

Lamento muito a tua perda.. :(

Beijosss

Teté disse...

O meu pai também era não-católico e ao morrer teve um funeral católico, com um padre que berrava que só entrava no reino dos céus quem acreditava em Deus...

Isso e as carpideiras lá da santa terrinha (a terra onde ele nasceu e morreu) enervaram-me mais do que seria normal, quando o meu mundo estava a desabar...

Mas, para ser franca, acho que nunca estive num funeral não católico, mesmo aqui em Lisboa. Nem me parece que faça muita diferença, para quem morre, mesmo não crente. E a emoção dos presentes nessa cerimónia estava lá, mesmo que sem palmas...

Beijoquitas!

Sun Iou Miou disse...

Pois, Tá-se bem! Talvez o padre tinha receios de emocionar-se e começar também ele a chorar.

Beijo de Segunda-Feira.

Sun Iou Miou disse...

Os funerais, Teté, não são para os mortos, julgo eu, que nem sentem nem padecem, mas para os vivos, para conforto dos vivos. É disso de que se trata, ou melhor dizendo, de que deveria tratar-se.

Beijoquita

Miguel Simões disse...

Em primeiro lugar, para quem conheceu Ademar Santos, como eu, através do blog aboxio, não pode deixar de estranhar a solicitação de funeral religioso por parte da sua irmã. Ademar Santos não era somente não-cristão, era um ateu confesso e militante, criticando duramente aqueles que em algum deus acreditavam. Solicitação tanto mais estranha quando a mesma pediu à agência funerária que fossem retiradas da urna quaisquer referências religiosas. Mas como ela o disse no anúncio de falecimento publicado no jornal, «apesar de... missa às..» (creio que foi assim que surgiu no jornal). Ou seja, tratava-se de um momento mais a gosto da família, pelo menos alguns, do que do falecido, que em várias circunstâncias chamou de «filhos da pu..» aos membros do clero.
Em segundo, apesar do seu desejo, não deixa de ser incompreensível os lamentos da irmã. Os «momentos laicos», «belos», a que ela se refere poderiam perfeitamente ter acontecido. Nas mais de 48 horas que mediaram entre o falecimento e o sepultamento, a urna poderia ter estado nos espaços que bem entendesse para que fossem lidos os textos que bem entendesse, que fossem batidas palmas nos momentos que bem entendesse, resumindo, que fossem lidos os elogios fúnebres que bem quisesse.
Querer em todo este espaço de tempo disponível, que tudo isso fosse colocado dentro do espaço da eucaristia, que tem o seu ritmo próprio, e na igreja, só o posso entender como desabafo de consciência de alguém que anda de «candeias às avessas» com a Igreja. Aliás falar em «beleza dos funerais laicos» em oposição à celebração religiosa só pode vir de alguém que não sabe aquilo que quis «impor» ao seu irmão.
Depois o contra-senso de uma afirmação: «não é fácil fazer um funeral laico a norte do Porto. Falta de liberdade religiosa?» Mas o que é que um funeral laico tem a ver com liberdade religiosa? Liberdade religiosa reclama-se para aqueles que querem exercer a sua religião. Não seria antes falta de liberdade laica?! Por falar a norte do Porto, procure informar-se como foi realizado um funeral laico de um dos fundadores do PS, que viveu em Guimarães.
Haja paciência...

Sun Iou Miou disse...

Miguel, o seu comentário é bem-vindo, mas eu conheci o Ademar, em pessoa, não só através do Abnóxio, e conheço a Laura, em pessoa. Eles dois conheciam-se melhor do que o Miguel ou eu os conhécemos.

Os funerais de qualquer signo, julgo eu, que nem acredito em deuses nem noutras vidas que não esta, são para consolo dos vivos. Quem é ateu não devera importar-se muito com o que façam dos seus restos... desde que morreu.

Escrevi após o funeral uma coisa que começa assim:

Entrei na igreja com a convicção de que só vendo-o num caixão entre cruzes, círios e o cheiro bolorento da água bendita podia ter a certeza de que morrera. Vivo, não o teriam enfiado ali... nem morto. Mas, finalmente (finalmente, é isso, e nunca mais pleno de significado o advérbio para mim), ele não dispusera nada, o que equivalia, se mal não o conheci, a um fazei de mim o que quiserdes, como um derradeiro obséquio de despedida à Laura, a sua (única) irmã, como costumava dizer, com um brilhozinho de orgulho no olhar.

Mais nada.