segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Pássaro pousa em ponta de flecha?
Essa noite Miss Anyeska tivera um pesadelo assustador. Quando acordou sentiu uma opressão no peito, fria, como de pedra, mas imputou-a ao rancho que lhe servira o guarda ao jantar. E falando em jantar, lá estava o outro já a fazer equilíbrios com a bandeja numa mão e o porta-chaves na outra.
—Ó, Zé! Hoje não me vai dar outra lavagem como a de ontem, pois não?
—Fique, tranquila, menina, que se quiser, tenho para você carne da melhor, sem caroço.
—Era bonito de ver!
—Mais bonito é de comer.
—Já caíste, lambão —murmurou com os seus botões.
—Disse o quê? —inquiriu o vigilante, tão fátuo que nada maliciava.
—Que nem sei porquê temos de aguardar, se estamos os dois com fome.
Enquanto o Zé entrava na cela a salivar e fechava a porta por precaução, Miss Anyeska contemplava o esmalte que acabava de aplicar nas unhas, ainda húmido, que a ia conduzir à liberdade. O conteúdo do frasco bastava para derrotar uma companhia de soldados destemidos, conforme lhe advertira o João Ubaldo Ribeiro, quem aprendera a fórmula do feitiço do índio Balduíno Galo Mau quando visitou a Ilha do Pavão (com tanto sucesso utilizada na célebre batalha chamada de Borra-Bota ou Sedição Silvícola, depende dos bandos), de maneira que uma simples lambedela devia servir bem ao seu propósito.
O Zé pousou a paparrotada infame na mesa, limpou as mãos suadas à camisa e virou-se para a galdéria (isto eram palavras mudas dele) que com uma unha vermelhíssima o convidava a assaltar o forte. Nem fez falta mais, que já tinha os dedos dela entre os dentes, a pintura a diluir-se na boca, a descer pelo esófago, a banhar as paredes do estômago. Aí notou ele uma aguilhoada, que não lhe impediu soltar com sofreguidão o cinto, enquanto ela lhe seguia passando os dedos duma mão pelas gengivas para estimular a produção de cuspe e com a outra lhe desabotoava muito lentamente as calças, dando tempo à droga a alcançar o destino, que rima com intestino.
Apenas se virou de costas Miss Anyeska, como para facilitar o labor, após lhe livrar o último botão da braguilha ao zeloso carcereiro, ouviu o bater da fivela quando as calças caíram encarquilhadas ao chão. Azar… o Zé encolheu-se ao primeiro espasmo.
—Olha, então já foi? —disse a Miss Anyeska como que desiludida.
—Pára aí, que não sei que me deu —atinou apenas a dizer enquanto um cólico mais agudo o dobrava ao meio e sentia o nefando líquido borbulhante no ventre, a ameaçar com escorrer pelas pernas, em enxurrada até—. Pára aí, que já venho!
E saiu a desandar para a sentina, sem pensar em portas que ficavam abertas, nem expedientes administrativos ou expulsões do corpo (ahahah!, isso era o único que lhe ocupava a mente, mas era outra a estrutura referida como continente e outra a sorte de despedimento irrefreável), não se sabe se mais propulsado pelo aperto ou pela humilhação.
Miss Anyeska ainda teve a pachorra de rabiscar no guardanapo de papel a despedida:
—Pássaro não pousa em ponta de flecha, não.
E voou.
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O título e o final do texto —que levava um tempo a me rondar pela carola sem encontrar oportunidade para se materializar— veio dos dedos dum meu Anónimo. A ele, obrigada.
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4 comentários:
cazador cazado
beijos
Estava de ser, LM, estava de ser. Boa é a minha Miss Anyeska. (`_^)
Bicos
Tenho de confessar que me sinto completamente perdido neste "romance" (devo ter deixado para trás alguns capítulos) e parece que já te percebo melhor em gallego que em português... eheheh.
Beijinho.
Oi, pá, CãoSarnento, vou-me suicidar e volto.
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