A primeira era uma visita de índole burocrática a um primeiro andar. Uma vez por ano tenho de lá ir para renovar o cartão que me dá acesso a muitas economias em matéria de gasto farmacêutico. Possuidora feliz do cartãozinho, pago só um 10% do PVP (até um máximo de quatroeurosetalcoisa) dos medicamentos de dispensação não hospitalar que necessito. E isso é bom. Os meus parcos rendimentos de tradutora e eu estamos gratos ao sistema. Não percebo é por que se tenho uma doença crónica sem mais cura possível por enquanto do que a morte devo é lá ir uma vez por ano. Ninguém poupa nisto. Não poupo eu, que podia ser uma linda reformada a viver duma mísera pensão mas não sou e por tanto tenho de me deslocar, perder de trabalhar e de olhar para o ar, nem poupa o organismo autonómico encarregado da gestão na pessoa da funcionária pública que tem de preencher a mão com letra legível o documento e a seguir acossar a inspectora médica até obter a sua bela e cara rubrica estampada no dito, deixando ambas de atender assuntos de certeza mais prementes e/ou satisfatórios.
Perguntem-me vocês, "Será que deves lá ir para provares que continuas viva?", que eu responderei, "Mas para que precisava eu morta dum chorudo desconto em fármacos?". Ponto.
A segunda visita é num rês-do-chão. A máquina, sem me desejar bom dia nem boa tarde e prévio reconhecimento do código de barras, cospe-me uma folha que me confere uma clave de cifras e letras, o número duma consulta e uma cor. E lá vou eu a procurar pelas paredes a franja verde que identifica o meu corredor de espera, paradoxos da arquitectura sanitária para os planos da assistência ambulatória. Abro o JL 1035 pela página 13. Leio:
Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente lhes pertenço.*
O ecrã anuncia o meu número. A médica recebe-me com um sorriso, dois beijos e uma voz estruturada como para falar a crianças sem cérebro. Pergunta-me se está tudo bem. Eu respondo, educadamente, com um está tudo óptimo aparelhado dum sorriso consoante ao dela, como quem se deixa fazer criança sem cérebro. Se fosse o meu médico de sempre, ele leria-me nos olhos bolas não, não está nada óptimo, está é tudo uma santíssima merda. E aconselharia-me um lexatin engolido demoradamente com um copo de bom whisky ―eu ficaria-me só pelo último. Mas o meu médico de sempre reformou-se e a substituta, que é nova e bem disposta, que tem o sorriso nos lábios e fala com a voz com que se fala às crianças sem cérebro, não lê além dos parâmetros analíticos que confirmam as minhas palavras: está tudo óptimo. E manda-me embora com cita e bateria analítica marcadas para dentro de seis meses num papel, o cartão que me certifica viva para o sistema sanitário na carteira e o eco duma conversa na cabeça:
de María para iMac Ademar: Gostei muito do "À mesa da usura", não tanto pelo que diz, que afinal é discurso repetido, mas pelo como. Tem portugueses para aí que escrevem bem, sabia, professor? Alguns dias penso que deveria virar portuguesa só para ser capaz de escrever assim. Alguns dias não, segundos só. Gosto de mim assim, nada perdida de amores pátrios.
de iMac Ademar para María: O Pina, além do mais, é um poeta interessante. Podes procura-lo na Antologia.
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*(Excerto dum artigo do Manuel António Pina publicado pela primeira vez em Visão, 14.06.2001)
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