Era sábado dum junho qualquer na outra margem. Estava calor. Sentada à sombra, sobrevivia ao post prandium com o copo ao alcance da mão direita, enquanto experimentava uma tumefacção interna crescente a medida que passava as páginas e bebia, inconsciente, água com gás. Nessas de inchar andava, quando se achegou a menina à minha mesa e a sua voz, quase num sussurro, expulsou-me de repente das entranhas da leitura.
―Perdona. Está ocupada? ―apontou para uma das cadeiras.
―Não, não. Pode levar ―respondi tão portuguesmente.
―Gracias.
A espanholita foi embora com a cadeira na mão. Eu fiquei com o ar preso na garganta, entre uma crise de tosse e uma sufocação. A seguir veio-me para cima uma pressão no esófago, como se fosse uma alma encarnada a fugir-me dos adentros, até que aos poucos uma espécie de ovo, julguei, começou a assomar-me pela boca. Às convulsões provocadas pela náusea expeli uma cabeça careca. Vinha de olhos escuros para o céu que me contemplavam como quem pede desculpa, sem exageros, pelo incomodo. Logo o reconheci. Peguei nele pelo nariz e puxei para fora o corpo inteiro, que vinha nu, todo babadinho, peganhento de sucos gástricos e, enfim, um nojo.
―Ó valter ―disse-lhe―, ainda bem tiveste a deferência de te parires de mim sem óculos.
Não respondeu. Pegou no maço de guardanapos que tinha esmagado debaixo do rabo e gastou-os todos em tentar limpar-se, mas só conseguiu acabar cheio de pedaçinhos de papel colados, como pétalas. Achamos engraçadíssimo e lindo, uma escultura no pedestal, mas nas costas sentimos confluírem as picadas dos muitos olhares dispersos pela esplanada, um resmungar invejoso que cortava as alegrias e alguns risos que soavam em notas acedas arrogantes, desprezativos. De modo que entrei no café e pedi um pano húmido. A empregada ainda me perguntou se era tudo.
Tirei-lhe aquela porcaria. Tinha um corpo arredondado e deixava-se mimar como um bebé. Quando terminei, fiquei a olhar para ele e pareceu-me um poeta nu bonito. Pedi-lhe, então, para descer da mesa e sentar como a gente grande ao meu lado numa cadeira. Obedeceu. As pernas penduravam-lhe tontas, sem alcançar o chão. Distraído na observação do movimento suspenso dos pés, falou-me assim, de cor:
―um dia apareceu um poeta sem pétalas, nunca tal se vira. sem pétalas, dizia-se, estava igual a nu, coberto de nada que o diferisse, como se ser poeta não trouxesse marcas à flor da pele. algumas pessoas riram-se nervosamente, e só por isso o estranho poeta se foi embora sem outra notícia.*
Não respondi. Ele levantou-se e partiu em direcção ao rio sem virar-se uma vez que fosse. Eu permaneci em silêncio, um bocado mãe, a vê-lo caminhar sobre as águas, esquecida de todas as línguas até hoje... em que acordei.
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valter hugo mãe. o poeta como nu. livro de maldições. folclore íntimo (2008: 1ª edição)
10 comentários:
O valter é bonito.
Ena, Sun... UAU!... :))))))
(fiquei sem palavras, vê tu...)
Às vezes penso que estou possuída, Vani ;)
A possessão é uma coisa diabólica, de anjos. Como tu. Como gosto de te ler. Sempre me dou conta do quanto perco por estar assim tão preguiçoso para e escrever. Isso passa? Um beijão de saudades... Setembro nos vemos!
Merecias era que não te falasse mais por essa preguiça, Oscar, porque eu também gosto de te ler. Mas sou fraca e sucumbo logo aos teus encantos e o teu sotaque. ;)
(E depois talvez não sentires necessidade de escrever seja sinal de que tudo está bem contigo. E eu alegro-me muito por isso.)
Muito boa viagem para ti e o Miguel.
Um bocadinho nojento, essa gravidez de água com gás e respectivo parto, mas a história está delirante! Entre poética e surrealista, muito ao teu jeito...
Não te preocupes, que diz o povo que o "bom filho à casa torna". Neste caso, à esplanada... :D
A gravidez era de palavras, Teté, o gás foi só para provocar o parto... ;)
(Ninguém reparou em que eu respondi instintivamente em português a quem me falava em espanhol?! Help! Um exorcista!)
Chamaste?!
Nem por isso. Era um pedido retórico. Não me quero livrar de demo nenhum, menos deste.
ok
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