segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A velha polaca. Capítulo III

Pipipí, pipipí, pipipí, pipipí, pip... o despertador tocou um bom pedaço. Quando com os olhos fechados e apalpando sobre a mesa-de-cabeceira conseguiu apaga-lo —não fosse o alarme, jamais se havia de levantar a horas—, largou um suspiro comprazido. Gabava-se de dormir a noite inteira de um lance. Ele imputava-o ao jantar frugal e à consciência serena e impoluta. Quanto ao primeiro, uma parte de verdade havia: deitava-se com o estômago praticamente vazio, com a digestão já feita, não por uma atitude espartana ante a existência, como presumia rotundo, mas por sovina, que era dos não comiam por não cagar. O da consciência, porém, era miragem: não que a tivesse tranquila, nem limpa; simplesmente carecia dela. Até é possível que fosse defeito congénito, mas isso seria evidentemente argumento para outra historia.
A mulher ao lado ressoava, impertérrita, talvez até demais. A um observador alheio ao filme dar-lhe-ia a sensação de que era uma treta. E ele aceitava pois também não tinha interesse em iniciar uma troca de palavras insubstancial que nesta altura do matrimónio a nada conduzia. Na casa de banho tentou fazer o mínimo barulho, lavou-se pouco e mal. Debruçado sobre o lavatório, deu uma ensaboadura nos sovacos e no pirilau, salpicando um bocado no chão, não fosse a Jennifer pedir guerra e o apanhasse desacautelado. Espremeu gozoso uma espinha que lhe desluzia o nariz com o rosto a dois centímetros do azougue e eliminou os restos com uma ponta da toalha. Depois passou gel pelo cabelo, medido, sem o estragar, molhando-o bastante para que aguentasse sem descolar até ao fim do dia. Tirou do cabide o blazer azul de botões doirados e logo de fechar a porta do dormitório, contemplou-se no espelho do hall enquanto o vestia pelo corredor adiante.
Na cozinha pegou no frasco do café instantâneo, aqueceu água no microondas e fora, tragou-o dum golo. Então sim, pôs o abrigo e saiu desferindo golpe tal na porta, que abalou o edifício. Que acordasse agora se queria a pandorga. O que acordou foi o vizinho a xingar-lhe os mortos.
Quando chegou à sucursal já tinha a Jennifer e mais o Eustáquio à espera, enregelados. Vendo-os, aguardou pelo saúdo de ambos a coro, como era o costume ditado pelas jerarquias. Antes de lhes franquear o passo e dissimulando ás costas do subordinado piscou-lhe o olho à bolseira. Ela correspondeu semiocultando com os dedos os dentes branquíssimos e com um falso rubor que sabia que lhe dava tesão.
Cada manhã era o mesmo. Entrava no gabinete, conectava o computador, lia o correio electrónico, examinava na imprensa local as necrologias e ligava à central caso houvesse alguma incidência. Depois fechava a porta, como se guardasse ali coisas importantes que não deviam ver olhos profanos, e acenando à moça com o indicador da mão direita a apontar para o tecto, dizia:

—Pst! Saio um segundo ao pequeno-almoço, menina Jennifer. Se perguntarem por mim, que estou numa reunião.
—Vá tranquilo, xôtor Segismundo —respondia ela invariavelmente. E arrebentava-lhe no rosto o balão do chicle.

Quando se dirigia à porta, viu-a vir ao longe. Acanhou instintivamente. Toda aquela arrogância que exibia ante os empregados desmanchou sem metáforas. Correu a abrir, com os pés e a dignidade a rasto.
Atrás do vidro blindado, o Eustáquio contorcia a fuça a estalar a língua, enquanto tentava extrair de entre os dentes unha migalha de bolacha que o enfadava. A Jennifer, que também reparara na dona Ludmila, debatia-se entre permanecer no posto ou ir retirar num pulo o ficus. A indecisão perdeu-a.

2 comentários:

Tá-se bem! disse...

uma ensaboadela nos sovacos e no pirilau?? eheheheheheh

Sun Iou Miou disse...

Agora percebeste para que eu precisava do pirilau, Tá-se bem!? (^_^)