A estória que com o título genérico de A velha polaca aparece neste blogue é a cara autêntica dos relatos apócrifos que foram aparecendo no extinto Desassossego (daquela A Guerra Aberta) atribuídos a um tal ti Jonas, um idoso tresloucado que perdeu a memória junto com os dentes. Todas as personagens existem ou existiram, dum jeito ou doutro, e os casos que nela se narram são realidade nua e crua. E já agora, quero ver quem é o bonitão que me põe queixa em tribunal!
Estava era feliz aquela manhã. Acho que já alguém o tinha dito. Um dia espantoso pressentia. O pequeno-almoço fora bom: restos de havia uns dias que lhe arrecadara a cozinheira -que bela mulher!-, com o seu toque bolorento. Vejamos se não desandava, que essa era outra, que se lhe criara o estômago delicado de tanto o alimentarem a poder de calhaus insulsos. E agora o passeio, xiça! Pode-se pedir mais no mundo? Logo que a viu com os sapatos de salto alto e o casaco de meia-estação, desatou a pular da alegria. Além disso, a olhada dela não o confundia, como absorta, os movimentos mecânicos, guardava o telemóvel e as chaves na bolsa. Era rua, rua, rua! E até talvez se achegassem ao jardim. Farejava que sim, hoje era mesmo, que o senhor levava dias sem dar sinal de si, e isso era visita certa à Cordô. Praia esperava que não, que o mar, às vezes, quando se punha bravo, ó caraças, era de respeito. E depois as danadas das areias, a se lhe ficarem nos olhos, nas orelhas... Sempre acabava a pedir colo. Uma poça de lama isso era diferente. Mas não estava com ar de querer chover. Então? Sai a gente ou não sai?
Ao dobrar a esquina levou com a rajada nas ventas. Glória bendita! Como ele gostaria de ficar a morar lá. Invejava aqueles gatos sempre em volta das lixeiras. Tomara ele essa vida... Não se lamentava, atenção, que não era mal-agradecido, que a jaça dele não era coisa de menosprezar -todavia, não lhe agradava aquela teima em lhe mudarem tanto o cobertor, com aquele fedor a química que lhe provocava espirros de contínuo- e a janta não lhe faltava. Mas, olha, ainda havia de imitar o senhor, sumir para aí uns diítas e fazer a corte a uma cadela que lhe enchia o olho, de ali da vizinhança, que já quase lhe tinha esquecido a última queca que dera, com aquela do pedigri, que porfiou a ama e teve de cumprir pelo que-não-seja. E logo como quer que os gatos sempre arrebentam as sacas (que a criada põe-se é levada da breca quando vê a ciscalhada e roga praga para eles uma semana), até podia lamber uma espinha e ir arranjando. E que viessem na procura dele, como faziam com o senhor, tudo beijinhos e afagos, vá, Tisco, malandrecas, para a casa, ai criatura, coisinhamailinda. E daí? Não tem a gente direito?
Ah, não, de jardim nada. Pópilas! Ião à do xôtor Segismundo. Que louvaminheiro o gajo, sempre com a cabeça ao rés do chão, que deve ter a coluna feita um sete. E mesmo assim, no outro dia quase o esborracha, que se não lhe joga a boca à canela, a esta altura via-se empalhado em cima do televisor, como a raposa; ou ao pescoço como o furão que leva no inverno a ama de passeio, que chama de estola de visão, e não é nada, acham que não sabe a gente distinguir um bicho do outro? Lá vinha a abrir a porta, nem que levasse um foguete no cu. Se calhar nem sabe que abre só, mil vezes tinha entrado ele ali: toca-se na campainha e abre-se, como a da casa, aos domingos, quando não está o Arturo, e puxa o fio desde o sótão o melindroso do Paulinho. Podiam era terminar logo, que não percebia o que viam nesse lugar... fora o fícus aquele. Olha, foi pensar na planta e veio a vontade a apertar.
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