domingo, 19 de outubro de 2008
Um desafio a sério
Traduzir é um prodígio em miniatura, demorado, um processo de alquimia em que o ouro se deve transformar num outro ouro. A vista pega na palavra escrita, os neurónios processam-a e lá eles procuram a palavra-espelho, que os dedos depois colocam enquanto a vista actua mais uma vez para comprovar que fica no seu sítio: cada frase é um quebra-cabeça. Levo anos neste ofício em que o artesão tem de se fazer menos do que nada, pois só é boa tradução aquela em que ninguém pensa na existência duma mão alheia ao do autor primeiro da obra. Mas nem sempre se consegue e por vezes lá fica uma sombra a alterar o ritmo, a estragar a harmonia, a gritar alto: “Olhem, cá estou eu, a merda do tradutor!”
E porquê conto isto tudo hoje? Pois porque receio que vou ter de desaparecer do mapa um tempinho. Eu sei que não vou aguentar sem vir por cá, que não vou resistir a deixar-me cair pelos vossos tascos, pelas vossas quintas e cubatas, onde sempre fui bem recebida, convidada umas vezes a porco morto, outras a malte, cerveja, ou tinto, e sempre a leituras gratas, nem que fossem até disparatadas. Mas aquilo do texto diário não vai poder ser, porque vou ter os dedos colados ao teclado e os olhos pouco mais além vão ver do ecrã do computador. Ainda bem, esta aí a janela da que me saúda a “cabra” de Cerveira —a cabra, sim, é um cervo, mas para o povo da Aldeia das Carrouchas foi e será cabra!
Tenho por diante um desafio profissional de 650 páginas de letra miúda, o trabalho com que sempre sonhei e que a casualidade me pôs nas mãos. Não vai ser fácil, até porque sendo parte a língua que mais me retrai à infância, anda lá perdida no cérebro e vou ter de resgata-la. Salva-me que já vou velha e nestas idades há menos dificuldade em lembrar o que se fez aos cinco anos do que o que se comeu nesse dia ao almoço (nem se se comeu, comi hoje?) ou onde se deixou o raio que o parta do chaveiro.
De maneira que se vêm por cá e descobrem uma teia de aranha, façam favor de não destruir, mas deixem-se caçar por ela, que será o modo eu lembrar que tenho de ir alimentando o monstro insaciável.
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19 comentários:
Sem dúvida que é um desafio sério traduzir além de palavras sentimentos.
Quantas vezes pegamos num livro e logo nas primeiras linhas a patente má tradução nos dá vontade de o largar...
Vou ter cuidado com as aranhas. Até porque mesmo não sendo bicho da minha simpatia, como acho que todos temos o nosso papel a desempenhar no Mundo, desde que elas não invadam o meu espaço, respeito-as como a qualquer outro ser vivo.
Bom trabalho e volta sempre que puderes porque eu ando com uma fé de que ainda vou aprender galego com os teus escritos :D.
Bjs.
Bom, se é um desafio que desejavas a sério, e não mais um daqueles chatinhos que te incumbem, acho que fazes muito bem!
Mesmo assim, de vez em quando vem cá dar uma varridela ao estaminé, que as aranhas e as teias ainda são ao menos, que sempre dão para exterminar moscas e afins, mas já o entulho e a poeirada... cóf... cóf... (`_´)
A foto está espectacular!
Jinhos e bom trabalho!!!
Xiça, Opinador, que ainda me fazes chorar, isto não é uma despedida de nunca mais nos vermos! Bem sabes que não vou resistir a fazer-te visitas, mais agora que está lá tudo novinho fora o dono do tasco.
Deixa ficar as aranhas, que não fossem elas a comer nas moscas, as moscas comiam-nos a nós.
Nem se vais aprender galego, que isto cá está cada dia mais embaralhado.
Beijinho e força com a mudança de nunca acabar.
Com certeza hei de vir, Teté, e vou-te visitar, mas não posso perder muito tempo a armadilhar textos. Tenho de me concentrar, tenho de me concentrar, tenho de me concentrar, tenho de me concentrar, tenho de me concentrar, tenho de me concentrar, tenho de me concentrar, tenho de me concentrar...
Beijoca para ti
Maria,
Já me fizeste entender e demonstraste que tens gabarito mais do que suficiente para levares essa tua tarefa como sendo um passeio pela Avenida dos Plátanos. E sei que vais arrumar intervalos para tomares, entre a dúvida de um vocábulo, um bom copo de vinho tinto ou até dares uma escapadinha para nos dizer algo.
Não precias de te concentrar tanto assim. Relaxa!
Beijos do Manoel Carlos
escapadelinha
¿Ves?. Se foses inmensamente millonaria non habías ter tempo de traballar tan duro.
Se antes de acabar o teu traballo te toca a primitiva, avísame que pasarei a recoller os cartos para que non te distraian.
Boa caza!
Manoel Carlos, cá estou para te dar a razão com um textinho novo que trouxe comigo do Porto do grande Ney.
Beijos
Sou tan inmensamente millonaria, Couselo, que boto por fóra.
E xa vexo -estrañoume a túa ausencia- que só asomas o morro polo interese. Antes, son capaz de tirar o boleto polo váter.
non é ausencia que é silencio, que non é o mesmo. Pero ti tira, filliña, e traballa.
Ai, como me doe o teu silencio, Couselo! Ti pensas que unha pode vivir sen a aclamación do seu público querido? Os silencios déixaos para contemplar o solpor nos meus ollos... que hoxe os teño de solpor mesmo, piscos... Xa é de noite? Podo ir para a cama?
eu deixo-te ir porque sei que voltas, de outra forma terias-me a perna ;)
boa sorte para essa mega traduçao ;)
beijinho
Hei de andar por aqui, Fausto, fica tranquilo. Tenho muito vício nisto e gosto de te fazer trabalhar. Não quero ocioso o que vai ser pai do meu filho.
Já percebi que vais correr por gosto.. :) Fico feliz por ti, mas quando quiseres já sabes que tens o malte pronto a servir.. (segunda prateleira à direita, psiuuuuu)
Até jááááá! Beijo de terça :))
e Bom trabalho!
Aceito o convite, Tá-se bem!, que vou precisar!
Beijo de martes!
Que bonita definición dese traballo común, Sun Iou Miou. Sen dúbida ti es unha boa ourive.
Espero visita túa para confidencias.
Sigrid.
A definición é bonita, Sigrid, pero difícil de aplicar.
Paréceme a min que visitas vas ter poucas, que estou soterrada.
Bicos
nem imagino a trabalheira que será traduzir.
Mas, deixa-me que te diga que dás um toque de encanto ao português desenxabido e triste que mais parece um cantar de fado do que uma lingua!
Todo o que feito com carinho é uma trabalheira, Van, mas gostosa.
E obrigada por esta visita demorada que me fizeste hoje. Vou seguir aqui a destripar frases. Bom fim-de!
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