quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Náufragos em terra










A carrinha como caixão colectivo, metaforicamente, transporte de cadáveres que se pensam vivos. O asfalto novíssimo da estrada tingiu-se de vermelho (sic). Ouvem-se sirenes. O sangue encardido que os bombeiros retiram do asfalto novíssimo. Detêm-se os curiosos na berma, os curiosos!, os não-mortos ainda, a satisfação por dentro (não fomos nós desta, não calhou a nós, isto não é connosco, jamais, nós somos passageiros noutra viagem, nós-outros). Traziam, diz-que, sal nos lábios, um cinzento-azul-verde de ilhas ao longe urdido nos olhos e cansaço. Em casa, há quem aguarde ainda a ensaiar o abraço, o beijo. Mas o quarto vazio já pressente a solidão e os gritos. A cama enorme. A noite mais longa. A voz pequena que interroga. O crucifixo castigado. O crucifixo apertado contra o peito. A raiva. O desespero. Corpos partidos, cortados, os dos vivos. Nenhum mar em que deitar a culpa. O sono. O excesso de velocidade a nenhures. A vida.

(O oceano devolve os cadáveres que não quer para si.)

6 comentários:

Kapikua disse...

Foda-se Sun Iou, arrepiaste-me todinho!

beijo grande

Sun Iou Miou disse...

Passei pelo lugar do acidente, ontem, pouco depois de que acontecesse. Ainda estava o espectáculo no seu esplendor.

Beijo (para desarrepiar)

Teté disse...

Estas histórias são sempre tão assim, que é de arrepiar mesmo. Porque será que continuam a acelerar como se a estrada fosse só deles e os acidentes só acontecessem aos outros?

Mas eu nunca paro para ver... que para desgraças já basta as que nos entram portas adentro!

Jonas disse...

...E mais uma vez com os de Caxinas, aquela fábrica abastecedora de cemitérios e de desesperos...
(essa do mar devolver os corpos que não quer para si, acertou-me em cheio!)

Sun Iou Miou disse...

Também eu não paro para olhar, Teté.

Sun Iou Miou disse...

Não cheguei a saber de onde eram, Jonas. Apenas ouvi no rádio que vinham de desembarcar em Vigo, de pescar pelos Açores: foram morrer nada mais entrar em Portugal, a poucos metros da saída da auto-estrada.

Acertei-te em cheio? Melhor não pergunto.