Por Laura Ferreira dos Santos
Sexta-feira, 08 de Outubro de 2010
Opinião
A experiência holandesa diz-nos que, com a ajuda médica, os “testamentos vitais” não melhoram significativamente
Quando muitos esperariam que, depois das críticas ao projecto do PS de Maio de 2009 que, entre outras coisas, legalizaria a elaboração de Declarações Antecipadas de Vontade (DAV), o partido enveredasse por um projecto diferente, apenas dedicado a essas directivas ou ao chamado “testamento vital”, acaba agora por nos revelar um projecto quase idêntico. Assim, mais uma vez, dos 23 artigos dedicados aos Direitos dos doentes e ao consentimento informado, apenas seis têm que ver com as ditas DAV.
Detenhamo-nos no n.º 5 do art. 13.º: “A eficácia vinculativa da declaração antecipada depende, designadamente, do grau de conhecimento que o outorgante tinha da natureza da sua doença e da sua evolução; do grau de participação de um médico na aquisição desta informação; do rigor com que são descritos os métodos terapêuticos que se pretendem recusar ou aceitar; da data da sua redacção; e das demais circunstâncias que permitam avaliar o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade”.
Já li outras legislações sobre este assunto, mas nada que se equipare a estas exigências, exceptuando a legislação austríaca (de 2006), país em que a classe médica possui um estatuto social intocável.
Algumas considerações.
A) Qualquer cidadão capaz deve poder efectuar uma DAV, independentemente do seu estado de saúde. Nesse caso, qual a necessidade de exigir que evidencie (como?) o grau de conhecimento da sua doença? E se não está doente? B) Embora, idealmente, se pudesse pensar que a DAV feita com a ajuda de um médico melhoraria a sua qualidade, a experiência holandesa diz-nos que, com essa ajuda, as DAV não melhoram significativamente: como até os médicos holandeses, tidos por pouco parentalistas, não desejam ver-se mais tarde vinculados a uma DAV, não investem muito na sua elaboração; e como tão-pouco querem um dia sentir-se “estorvados” por um procurador de cuidados de saúde, tão-pouco fazem sentir ao utente a necessidade de o nomear. Por outro lado, o Código Deontológico dos Médicos portugueses prevê, no seu art.º 49º, que à recusa informada de tratamento por parte do doente pode o médico responder com a recusa de continuação de cuidados, não se falando, ao longo do código, da necessidade de concertar sempre com o doente planos terapêuticos alternativos. É a estes médicos, tão mal preparados para aceitarem a recusa de um tratamento, que se vai pedir que ajudem a elaborar uma listagem que é sobretudo de recusas? Não se vê o constrangimento em que se coloca o cidadão? E quantos portugueses têm médico de família? C) Para além de provar o grau de conhecimento que tenho da natureza da minha suposta doença, para fazer uma DAV vinculativa tenho também de provar com que grau de convicção a fiz. Como? Há “convictómetros”? Vou estar mais uma vez dependente de um médico? Do Ministério Público? Porquê este “encarniçamento hermenêutico” infantilizante e policial? D) Deve-se dizer claramente se uma DAV é válida até à morte ou tem de ser renovada com uma periodicidade fixa, não deixar isso ao livre arbitro de um médico. E) Para ajudar a identificar e a pensar no que se recusa ou não, e em que situações clínicas, essas situações e respectivos tratamentos devem estar discriminados (necessidade de formulários bem feitos, como os da Andaluzia).
Como já escrevi, o “testamento vital” deve ser instrumento de uma democracia maior no domínio da defesa das convicções pessoais no âmbito da saúde. Pelas limitações que apontei, não vejo como este projecto possa cumprir esse objectivo.
Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN (laura.laura@mail.telepac.pt)
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