terça-feira, 29 de junho de 2010

Gravidez ectópica

Era sábado dum junho qualquer na outra margem. Estava calor. Sentada à sombra, sobrevivia ao post prandium com o copo ao alcance da mão direita, enquanto experimentava uma tumefacção interna crescente a medida que passava as páginas e bebia, inconsciente, água com gás. Nessas de inchar andava, quando se achegou a menina à minha mesa e a sua voz, quase num sussurro, expulsou-me de repente das entranhas da leitura.

―Perdona. Está ocupada? ―apontou para uma das cadeiras.
―Não, não. Pode levar ―respondi tão portuguesmente.
―Gracias.

A espanholita foi embora com a cadeira na mão. Eu fiquei com o ar preso na garganta, entre uma crise de tosse e uma sufocação. A seguir veio-me para cima uma pressão no esófago, como se fosse uma alma encarnada a fugir-me dos adentros, até que aos poucos uma espécie de ovo, julguei, começou a assomar-me pela boca. Às convulsões provocadas pela náusea expeli uma cabeça careca. Vinha de olhos escuros para o céu que me contemplavam como quem pede desculpa, sem exageros, pelo incomodo. Logo o reconheci. Peguei nele pelo nariz e puxei para fora o corpo inteiro, que vinha nu, todo babadinho, peganhento de sucos gástricos e, enfim, um nojo.

―Ó valter ―disse-lhe―, ainda bem tiveste a deferência de te parires de mim sem óculos.

Não respondeu. Pegou no maço de guardanapos que tinha esmagado debaixo do rabo e gastou-os todos em tentar limpar-se, mas só conseguiu acabar cheio de pedaçinhos de papel colados, como pétalas. Achamos engraçadíssimo e lindo, uma escultura no pedestal, mas nas costas sentimos confluírem as picadas dos muitos olhares dispersos pela esplanada, um resmungar invejoso que cortava as alegrias e alguns risos que soavam em notas acedas arrogantes, desprezativos. De modo que entrei no café e pedi um pano húmido. A empregada ainda me perguntou se era tudo.

Tirei-lhe aquela porcaria. Tinha um corpo arredondado e deixava-se mimar como um bebé. Quando terminei, fiquei a olhar para ele e pareceu-me um poeta nu bonito. Pedi-lhe, então, para descer da mesa e sentar como a gente grande ao meu lado numa cadeira. Obedeceu. As pernas penduravam-lhe tontas, sem alcançar o chão. Distraído na observação do movimento suspenso dos pés, falou-me assim, de cor:

―um dia apareceu um poeta sem pétalas, nunca tal se vira. sem pétalas, dizia-se, estava igual a nu, coberto de nada que o diferisse, como se ser poeta não trouxesse marcas à flor da pele. algumas pessoas riram-se nervosamente, e só por isso o estranho poeta se foi embora sem outra notícia.*

Não respondi. Ele levantou-se e partiu em direcção ao rio sem virar-se uma vez que fosse. Eu permaneci em silêncio, um bocado mãe, a vê-lo caminhar sobre as águas, esquecida de todas as línguas até hoje... em que acordei.
____________
valter hugo mãe. o poeta como nu. livro de maldições. folclore íntimo (2008: 1ª edição)

10 comentários:

Sun Iou Miou disse...

O valter é bonito.

Ana disse...

Ena, Sun... UAU!... :))))))

(fiquei sem palavras, vê tu...)

Sun Iou Miou disse...

Às vezes penso que estou possuída, Vani ;)

Oscar disse...

A possessão é uma coisa diabólica, de anjos. Como tu. Como gosto de te ler. Sempre me dou conta do quanto perco por estar assim tão preguiçoso para e escrever. Isso passa? Um beijão de saudades... Setembro nos vemos!

Sun Iou Miou disse...

Merecias era que não te falasse mais por essa preguiça, Oscar, porque eu também gosto de te ler. Mas sou fraca e sucumbo logo aos teus encantos e o teu sotaque. ;)

(E depois talvez não sentires necessidade de escrever seja sinal de que tudo está bem contigo. E eu alegro-me muito por isso.)

Muito boa viagem para ti e o Miguel.

Teté disse...

Um bocadinho nojento, essa gravidez de água com gás e respectivo parto, mas a história está delirante! Entre poética e surrealista, muito ao teu jeito...

Não te preocupes, que diz o povo que o "bom filho à casa torna". Neste caso, à esplanada... :D

Sun Iou Miou disse...

A gravidez era de palavras, Teté, o gás foi só para provocar o parto... ;)

(Ninguém reparou em que eu respondi instintivamente em português a quem me falava em espanhol?! Help! Um exorcista!)

Maria José Meireles disse...

Chamaste?!

Sun Iou Miou disse...

Nem por isso. Era um pedido retórico. Não me quero livrar de demo nenhum, menos deste.

Maria José Meireles disse...

ok