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domingo, 22 de maio de 2011
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Os livros, sempre
BARRETO NUNES, Henrique. Amigos Maiores que o Pensamento. Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. 2010
No passado 21 de dezembro, o Henrique Barreto Nunes lançou uma colectânea de artigos e textos em volta das suas lutas e dos seus livros e que dedica, parafraseando o Zeca Afonso, aos seus amigos.
O volume, publicado pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, foi apresentado na sede desta pelo geógrafo Álvaro Domingues.
___________________
Improviso para saudar numa ca(u)sa um grande Amigo...
Para o Henrique Barreto Nunes
Deixa que nesta noite polar
a memória ocupe o pensamento todo
e não sobre lugar na mesa
para mais ninguém
foi aqui (lembras-te?)
que interrogámos o destino
e o ganhámos
talvez tudo o mais tenha sido em vão
menos aqui
nesta antiquíssima liberdade
que nenhuma ruína calou
nenhum esquecimento.
Ademar Ferreira dos Santos. Em Abnóxio
08.01.2010
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Criatura
Nasceu um blogue que não é mais um, antes é UM muito especial para mim e que faz parte do melhor legado que nunca sonhei receber.
Chegou a hora de ouvir a voz que nasce do pensamento da Maria Garrido.
terça-feira, 16 de novembro de 2010
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Espuma
TEMPO quase a roçar o nada, espaço que aos poucos em areia se vazia. Um castelo de borbulhas desaba, esvaece. Sal e água, efervescência em ondas que permanece distinta, nos lábios. Mergulho em mim, lutando-me. Branco, e um fundo azul roubado... ou será verde?
Verde, é verdade: as camélias de Aveleda e nós, todos. Transparências.
sábado, 30 de outubro de 2010
Afinal era só para dizer que hoje me trataram por...
As folhas nas vinhas estavam vermelhas, ainda não ocras. Viam-se bem da auto-estrada e sugeriam outonos que nunca viriam como eu gostaria que viessem. Tive vontade de encostar para tirar umas fotografias, retê-las num rectângulo como se fossem ramos de camélia apanhados um por um, os mais verdes, a enfeitar a pedra, escura ―nada se quer saber daqueles outros amarelinhos, carentes de magnésio ou ferro, como a gente, às vezes, de afecto. Mas ninguém que tenha juízo pára na berma da auto-estrada a tirar fotografias de vinhas vermelhas, nem verdes, nem sequer de vinhas sem folhas.
Por isso continuei caminho, desatenta já ao chamado da paisagem, centrados os olhos nas linhas brancas que delimitam, centrado o pensamento entre a memória e o nunca, assim também delimitado. Estreito. Até que saí.
Numa dada altura sai-se sempre. Até porque é preciso sair para entrar num mundo diferente ou no anterior que já não será o mesmo. Paguei a portagem, claro. Ninguém atravessa a fronteira do esquecimento se não levar a moeda na boca para o barqueiro. E então aconteceu o que ninguém esperava. Foi na rotunda. Mandaram parar e encostei, desliguei o aparelho de música onde tocavam cravos talvez de Bach e abri a janela ao guardinha:
―Bom dia. Tem os documentos, faz favor, os pessoais e os do carro?
―Tenho. Muito bom dia. Um momento. Ora, a carta de condução está aqui. Faz favor. E os documentos do carro...
―Mas afinal a menina é portuguesa ou é espanhola?
Diga-se de passagem que sorri e nem me pareceu a partir de aí que o céu fosse tão cinzento. Digo mais, abriu-se um clarão que durou até o início do regresso.
Por isso continuei caminho, desatenta já ao chamado da paisagem, centrados os olhos nas linhas brancas que delimitam, centrado o pensamento entre a memória e o nunca, assim também delimitado. Estreito. Até que saí.
Numa dada altura sai-se sempre. Até porque é preciso sair para entrar num mundo diferente ou no anterior que já não será o mesmo. Paguei a portagem, claro. Ninguém atravessa a fronteira do esquecimento se não levar a moeda na boca para o barqueiro. E então aconteceu o que ninguém esperava. Foi na rotunda. Mandaram parar e encostei, desliguei o aparelho de música onde tocavam cravos talvez de Bach e abri a janela ao guardinha:
―Bom dia. Tem os documentos, faz favor, os pessoais e os do carro?
―Tenho. Muito bom dia. Um momento. Ora, a carta de condução está aqui. Faz favor. E os documentos do carro...
―Mas afinal a menina é portuguesa ou é espanhola?
Diga-se de passagem que sorri e nem me pareceu a partir de aí que o céu fosse tão cinzento. Digo mais, abriu-se um clarão que durou até o início do regresso.
domingo, 24 de outubro de 2010
Onde o mar começa
Começo onde acaba a tranquilidade
e termino onde o mar começa
Ademar Santos. Descansando do Futuro
Sei lá, talvez, era mesmo, afinal, de emoção que eu tremia e por isso não senti o frio a agarrar-me nos ossos.
E na sexta levarei contigo os ramos verdes de camélia ao breve território da espuma. Nenhuma flor.
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Diga? (ou ás voltas co silencio)
SOA o teléfono. Non é ninguén nunca. Ninguén para min. Xente que colleu mal o número, xente que marcou mal o número, xente que vende, xente que pergunta, voces automáticas que ofrecen opcións do cero ao tres ao alcance dun dedo. Xente ou nin xente. E de cada vez que soa o teléfono, antes de descolgar, espreito na pantalla o número, porque quen sabe se non é unha chamada túa, porque quen sabe se non é unha chamada para min, porque quen sabe se non é unha chamada túa para min. Nunca es ti. Sempre son eu.
Un día destes, calquera día, soará o teléfono e non serei eu quen atenda.
(Tampouco serás ti quen chame.)
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
E daí o silêncio
ATÉ pareceria, se eu contasse o que tenho para contar, que o mundo é uma grandíssima merda, não sendo como bem sabemos: o mundo é feito de cores... e de dias.
domingo, 5 de setembro de 2010
Propósito de emenda
Redescubrín con el que non era necesario saber a hora cando as horas nos pertencen. O sol marca os tempos: o de camiñar polo piñeiral ao abrigo do sol, o de afundir os pés na area na fin da tarde e o de deterse a contemplar en silencio o día que termina. Rituais de sosego antiquísimos.
Onte lembreino... lembráronmo.
domingo, 29 de agosto de 2010
Éramos poucos...
Sexta-feira passada, depois de matutar até o ponto de quase fundir o cérebro, achei que não devia limitar-me a espreitar e clicar em "gosto" pelo feisebuque fora. As palavras do Vítor Oliveira Jorge que entre delicados dardos contra os voyeurs (ai!) aludiam às revoluções internas, animando a rebentar esquemas, remoíam em mim num fervo não fervo quase incandescente que me queimava nos dedos. O que é que eu podia fazer nessa imensa montra de egos? Como quer que a ideia de entregar esforços a alimentar vaquinhas que nem se deixam comer não me enchia, optei por fazer o único que sei... mais ou menos: traduzir. Assim, criei nas "notas" um compromisso comigo para ir passando poemas de autores de que gosto (uns de sobra conhecidos, outros nem por isso) de português para espanhol e mesmo, vez por outra, com muito atrevimento, ao contrário.
Mais tarde ocorreu-me que bem podia expor esse trabalho (porque é um trabalho mesmo, ou pensam que enfio os poemas no tradutor-bimby do google, hein?!) além do círculo reduzido e selecto de amiguíssimos feseibuqueanos, criando mais um blogue com idêntico esquema, aberto ao planeta Terra e parte de Vénus, por enquanto. De certa maneira, uma ponte que se juntava ao que esta tem chegado a ser pouco e pouco.
E como se tratava de partilhar e havia um apartado do Abnóxio de Ademar Ferreira dos Santos de cujo contido e epígrafe sempre gostei... à maneira nasceu o título:
No blogue irei colocando os poemas que escolher para o féisebuque. Como quer que alguns já saíram lá desde Sexta-feira, aparecem agora n'O poema... com essas mesmas datas. Só a partir de hoje é que começarão, notas e blogue, a estar sincronizados.
Eu sei que há por aí algum amigalhaço que não aprecia poesia (e ainda bem, porque então, olhem que nojo, ele seria perfeito!), mas eu também te digo, meu caro, não lerás meia palavra a gabar bola neste tasco. Porém, isto será mote para outra postagem...
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domingo, 1 de agosto de 2010
Artigo roubado, porque sim
Hoje apeteceu-me trazer aqui este artigo de opinião da Laura Ferreira dos Santos editado no jornal Público de 31 de Julho 2010
A beleza dos funerais laicos
Não é fácil fazer um funeral laico a norte do Porto. Falta de liberdade religiosa para os não-crentes?
Através dos media, tenho observado a beleza de alguns funerais laicos, como o de Saramago: os/as amigos/as e os/as estudiosos/as podem falar à vontade de aspectos da obra, do trabalho ou do carácter de quem morreu. A pessoa falecida tem direito ao seu nome, à sua biografia, a testemunhos sobre o melhor da sua vida. De funerais laicos muito mais discretos dizem-me que correm de modo semelhante. Ora, eu nunca vi acontecer isto num funeral religioso católico: quem morre é reduzido a um cadáver a enterrar, e não a uma pessoa, a uma tessitura de afectos, compromissos e paixões, por mais humilde que tenha sido a sua vida. De repente, deixa-se de se ser aquele homem ou mulher que os familiares e amigos recordam com afecto, e de que tantas histórias conhecem, para se ser apenas um "servo de Deus" (mas até Cristo disse: "Não vos chamo servos, mas amigos") que exemplifica a vulnerabilidade humana e serve para dizer que a vida terrestre é uma completa miséria. Mesmo quando dizem o nome do "servo", custa aos familiares e amigos ver como o padre mostra não saber ao certo onde o apontou. Afinal, aquele é um cadáver de quem não sabe nada, por que raio havia de ter um nome? O protocolo que rege os funerais católicos só diz que aquele corpo tem de ser enterrado com umas tantas orações e bênções, não fala de afectos nem de ternura. Afectos e ternura não se protocolam, logo não existem nas instituições que tanto amam os protocolos.
O meu único Irmão, com quem tinha um elo mágico, morreu-me abruptamente há pouco, apenas com 57 anos. Apesar de ele ser não-crente, quis fazer-lhe um funeral católico. Era como se, desse modo, tentasse acompanhá-lo a outras margens de ternura e serenidade. Ele dizia que, se houvesse deus, ao menos que fosse parecido com o meu, por isso achei que compreenderia, ou perdoaria, o meu gesto. Mas tive as minhas dificuldades. Sim, poder-se-ia fazer funeral católico por não-crente, mas, atenção, não por suicida; os alunos dele, que encheram a igreja, poderiam ler antes do final da missa um texto que tinham escrito em sua memória, mas o pároco não podia permitir que a missa fosse de "homenagem". Quanto a outro padre que concelebrou, os alunos estariam "riscados", eu é que disse peremptoriamente que já obtivera autorização para eles. E, sem entender que eu tivesse escolhido para o meu Irmão um caixão sem cruz, o pároco fez-me desejar fazer-lhe um funeral laico. Só que já não tinha tempo, e não é fácil fazer um funeral laico a norte do Porto. Falta de liberdade religiosa?
Estavam na igreja amigos/as que poderiam ter de facto ajudado naquela despedida tão abrupta, cada um falando de uma faceta do Ademar, que até era bem conhecido na cidade e que há anos editava o seu singular Abnóxio. A antiga directora do Mosteiro de Tibães pegou na sua urna, em memória de toda a luta que ele travara pelo mosteiro. Mas ficámos sobretudo a cumprir um protocolo. E foram os seus alunos a personalizar a cerimónia, num texto lido com pressa por causa da emoção e que a todos comoveu. Muitos desejaram bater palmas. Era a emoção contida que se queria manifestar, pelos alunos e pela despedida. Mas estava-se a cumprir um protocolo, e toda a gente se inibiu.
Alguns padres cultos portugueses desfazem-se em elogios a Gran Torino. Não entendo: Gran Torino abre com uma cerimónia de funeral em que, perante a homilia do jovem padre ingénuo, o actor Clint Eastwood exclama baixinho, com despeito: "Jesus!" Acharão estes padres cultos que procedem de modo muito diferente?
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Laura Ferreira dos Santos é docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN
A beleza dos funerais laicos
Não é fácil fazer um funeral laico a norte do Porto. Falta de liberdade religiosa para os não-crentes?
Através dos media, tenho observado a beleza de alguns funerais laicos, como o de Saramago: os/as amigos/as e os/as estudiosos/as podem falar à vontade de aspectos da obra, do trabalho ou do carácter de quem morreu. A pessoa falecida tem direito ao seu nome, à sua biografia, a testemunhos sobre o melhor da sua vida. De funerais laicos muito mais discretos dizem-me que correm de modo semelhante. Ora, eu nunca vi acontecer isto num funeral religioso católico: quem morre é reduzido a um cadáver a enterrar, e não a uma pessoa, a uma tessitura de afectos, compromissos e paixões, por mais humilde que tenha sido a sua vida. De repente, deixa-se de se ser aquele homem ou mulher que os familiares e amigos recordam com afecto, e de que tantas histórias conhecem, para se ser apenas um "servo de Deus" (mas até Cristo disse: "Não vos chamo servos, mas amigos") que exemplifica a vulnerabilidade humana e serve para dizer que a vida terrestre é uma completa miséria. Mesmo quando dizem o nome do "servo", custa aos familiares e amigos ver como o padre mostra não saber ao certo onde o apontou. Afinal, aquele é um cadáver de quem não sabe nada, por que raio havia de ter um nome? O protocolo que rege os funerais católicos só diz que aquele corpo tem de ser enterrado com umas tantas orações e bênções, não fala de afectos nem de ternura. Afectos e ternura não se protocolam, logo não existem nas instituições que tanto amam os protocolos.
O meu único Irmão, com quem tinha um elo mágico, morreu-me abruptamente há pouco, apenas com 57 anos. Apesar de ele ser não-crente, quis fazer-lhe um funeral católico. Era como se, desse modo, tentasse acompanhá-lo a outras margens de ternura e serenidade. Ele dizia que, se houvesse deus, ao menos que fosse parecido com o meu, por isso achei que compreenderia, ou perdoaria, o meu gesto. Mas tive as minhas dificuldades. Sim, poder-se-ia fazer funeral católico por não-crente, mas, atenção, não por suicida; os alunos dele, que encheram a igreja, poderiam ler antes do final da missa um texto que tinham escrito em sua memória, mas o pároco não podia permitir que a missa fosse de "homenagem". Quanto a outro padre que concelebrou, os alunos estariam "riscados", eu é que disse peremptoriamente que já obtivera autorização para eles. E, sem entender que eu tivesse escolhido para o meu Irmão um caixão sem cruz, o pároco fez-me desejar fazer-lhe um funeral laico. Só que já não tinha tempo, e não é fácil fazer um funeral laico a norte do Porto. Falta de liberdade religiosa?
Estavam na igreja amigos/as que poderiam ter de facto ajudado naquela despedida tão abrupta, cada um falando de uma faceta do Ademar, que até era bem conhecido na cidade e que há anos editava o seu singular Abnóxio. A antiga directora do Mosteiro de Tibães pegou na sua urna, em memória de toda a luta que ele travara pelo mosteiro. Mas ficámos sobretudo a cumprir um protocolo. E foram os seus alunos a personalizar a cerimónia, num texto lido com pressa por causa da emoção e que a todos comoveu. Muitos desejaram bater palmas. Era a emoção contida que se queria manifestar, pelos alunos e pela despedida. Mas estava-se a cumprir um protocolo, e toda a gente se inibiu.
Alguns padres cultos portugueses desfazem-se em elogios a Gran Torino. Não entendo: Gran Torino abre com uma cerimónia de funeral em que, perante a homilia do jovem padre ingénuo, o actor Clint Eastwood exclama baixinho, com despeito: "Jesus!" Acharão estes padres cultos que procedem de modo muito diferente?
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Laura Ferreira dos Santos é docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN
terça-feira, 6 de julho de 2010
Homenagem ao Ademar, dois ou a parte escrita: ponto de encontro
Fossem assim todas as aulas, todos os encontros. Mas isto não eram aulas: era a vida isto, aprender a aprender... haja alguém que ensine e queira aprender da gente.
Primeiro foi a música, ouvimos, e na música eram só respirações, tosses sustidas contra a secura da saudade que se empilha e empalha a garganta, as memórias a deslizar em vertigem de contactos. Veio depois a escrita, lemos, alto e claro, compreensão palpável, sentido o significado de cada vírgula ou a sua ausência, da vírgula digo, tanto é a sua leveza importante. A seguir, as vozes, de cada quem, quem sou, partilhamos, os testemunhos, todos na sequência duma mesma declaração tácita ou expressa de paixão, todos urdidos de cloreto de sódio e água, todos numa troca de oxigénio e dióxido de carbono ou alento, a química reagindo.
No fim, um puzzle recomposto de peças que vieram a confluir na essência, o ponto de encontro numa humanidade singular e múltipla, dádiva de anos que ainda sabendo a pouco deverão ser provisão bastante para o caminho até ao até.
sábado, 3 de julho de 2010
sexta-feira, 4 de junho de 2010
Divagações para as sobrevivências
A primeira era uma visita de índole burocrática a um primeiro andar. Uma vez por ano tenho de lá ir para renovar o cartão que me dá acesso a muitas economias em matéria de gasto farmacêutico. Possuidora feliz do cartãozinho, pago só um 10% do PVP (até um máximo de quatroeurosetalcoisa) dos medicamentos de dispensação não hospitalar que necessito. E isso é bom. Os meus parcos rendimentos de tradutora e eu estamos gratos ao sistema. Não percebo é por que se tenho uma doença crónica sem mais cura possível por enquanto do que a morte devo é lá ir uma vez por ano. Ninguém poupa nisto. Não poupo eu, que podia ser uma linda reformada a viver duma mísera pensão mas não sou e por tanto tenho de me deslocar, perder de trabalhar e de olhar para o ar, nem poupa o organismo autonómico encarregado da gestão na pessoa da funcionária pública que tem de preencher a mão com letra legível o documento e a seguir acossar a inspectora médica até obter a sua bela e cara rubrica estampada no dito, deixando ambas de atender assuntos de certeza mais prementes e/ou satisfatórios.
Perguntem-me vocês, "Será que deves lá ir para provares que continuas viva?", que eu responderei, "Mas para que precisava eu morta dum chorudo desconto em fármacos?". Ponto.
A segunda visita é num rês-do-chão. A máquina, sem me desejar bom dia nem boa tarde e prévio reconhecimento do código de barras, cospe-me uma folha que me confere uma clave de cifras e letras, o número duma consulta e uma cor. E lá vou eu a procurar pelas paredes a franja verde que identifica o meu corredor de espera, paradoxos da arquitectura sanitária para os planos da assistência ambulatória. Abro o JL 1035 pela página 13. Leio:
Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente lhes pertenço.*
O ecrã anuncia o meu número. A médica recebe-me com um sorriso, dois beijos e uma voz estruturada como para falar a crianças sem cérebro. Pergunta-me se está tudo bem. Eu respondo, educadamente, com um está tudo óptimo aparelhado dum sorriso consoante ao dela, como quem se deixa fazer criança sem cérebro. Se fosse o meu médico de sempre, ele leria-me nos olhos bolas não, não está nada óptimo, está é tudo uma santíssima merda. E aconselharia-me um lexatin engolido demoradamente com um copo de bom whisky ―eu ficaria-me só pelo último. Mas o meu médico de sempre reformou-se e a substituta, que é nova e bem disposta, que tem o sorriso nos lábios e fala com a voz com que se fala às crianças sem cérebro, não lê além dos parâmetros analíticos que confirmam as minhas palavras: está tudo óptimo. E manda-me embora com cita e bateria analítica marcadas para dentro de seis meses num papel, o cartão que me certifica viva para o sistema sanitário na carteira e o eco duma conversa na cabeça:
de María para iMac Ademar: Gostei muito do "À mesa da usura", não tanto pelo que diz, que afinal é discurso repetido, mas pelo como. Tem portugueses para aí que escrevem bem, sabia, professor? Alguns dias penso que deveria virar portuguesa só para ser capaz de escrever assim. Alguns dias não, segundos só. Gosto de mim assim, nada perdida de amores pátrios.
de iMac Ademar para María: O Pina, além do mais, é um poeta interessante. Podes procura-lo na Antologia.
_______________
*(Excerto dum artigo do Manuel António Pina publicado pela primeira vez em Visão, 14.06.2001)
Perguntem-me vocês, "Será que deves lá ir para provares que continuas viva?", que eu responderei, "Mas para que precisava eu morta dum chorudo desconto em fármacos?". Ponto.
A segunda visita é num rês-do-chão. A máquina, sem me desejar bom dia nem boa tarde e prévio reconhecimento do código de barras, cospe-me uma folha que me confere uma clave de cifras e letras, o número duma consulta e uma cor. E lá vou eu a procurar pelas paredes a franja verde que identifica o meu corredor de espera, paradoxos da arquitectura sanitária para os planos da assistência ambulatória. Abro o JL 1035 pela página 13. Leio:
Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente lhes pertenço.*
O ecrã anuncia o meu número. A médica recebe-me com um sorriso, dois beijos e uma voz estruturada como para falar a crianças sem cérebro. Pergunta-me se está tudo bem. Eu respondo, educadamente, com um está tudo óptimo aparelhado dum sorriso consoante ao dela, como quem se deixa fazer criança sem cérebro. Se fosse o meu médico de sempre, ele leria-me nos olhos bolas não, não está nada óptimo, está é tudo uma santíssima merda. E aconselharia-me um lexatin engolido demoradamente com um copo de bom whisky ―eu ficaria-me só pelo último. Mas o meu médico de sempre reformou-se e a substituta, que é nova e bem disposta, que tem o sorriso nos lábios e fala com a voz com que se fala às crianças sem cérebro, não lê além dos parâmetros analíticos que confirmam as minhas palavras: está tudo óptimo. E manda-me embora com cita e bateria analítica marcadas para dentro de seis meses num papel, o cartão que me certifica viva para o sistema sanitário na carteira e o eco duma conversa na cabeça:
de María para iMac Ademar: Gostei muito do "À mesa da usura", não tanto pelo que diz, que afinal é discurso repetido, mas pelo como. Tem portugueses para aí que escrevem bem, sabia, professor? Alguns dias penso que deveria virar portuguesa só para ser capaz de escrever assim. Alguns dias não, segundos só. Gosto de mim assim, nada perdida de amores pátrios.
de iMac Ademar para María: O Pina, além do mais, é um poeta interessante. Podes procura-lo na Antologia.
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*(Excerto dum artigo do Manuel António Pina publicado pela primeira vez em Visão, 14.06.2001)
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segunda-feira, 31 de maio de 2010
In memoriam

María Alonso Seisdedos
domingo, 30 de maio de 2010
Calcetíns de coelliños ou mar
Non son xente de levar bichos nos pés. (Hai quen sexa, fauna e flora a discreción, viva ou reproducida, sen comentarios.) A ver, é que están novos e non podo andar sempre por aí de roupa vella, coma un cocido do día seguinte e menos en plena primavera. Fica mal. Só por iso iso os puxen. E porque viñan no conxunto de tres daqueloutros de riscas negras e grises que me gustan tanto. Pero estes, ai, xa os imaxino, asomando as orellas entre o botín e a perneira dos vaqueiros, o fulano do coche que vai detrás de min, dicindo ou pensando, depende: Mira, mira, esa da moto leva coelliños presos nos pés. Ridículo. E eu vou ver o mar. O mar é unha terraza cunha botella de Pedras fría sobre a mesa.
―Café não? ―estrañouse a camareira―. A senhora sempre pedia café e uma Pedras (fresca)! Por isso.
―Tiraram-me o café... também ―e sorríolle, non é só para ela o sorriso e o adverbio, senón para as fonduras de min, que é onde se navega.
Gústame este bar, o seu nivel de barullo tolerable, que me fai sentir no mundo sen me roubar os adentros. Aquí pódese ler.
Falar alto no escuro é também uma das grandes violências, é grave, é desrespeitar a natureza das coisas. Por isso dos mortos nada escutamos porque morrer é a terra cobrir os corpos, e é denso, um escuro permanente, sólido, como uma construção negra, mas sem matéria. Não os ouvimos.*
Este rapaz escribe verdades soltas, pero aquí non leva a razón nin lla eu dou. Por algo ando hoxe de calcetíns de coelliños. Nunca, endexamais!, iría ao pé de ti con estes calcetíns. Quen te aturaba! E o xelado que pido despois é de chocolate e vainilla, non de amorodos derretido con anacos de froita. A antuca gárdame do sol na cabeza e no xelado. Haxa quen pense inventos destes!
Levanto os sentidos ao horizonte. O mar non é meu, cousa que, señoras e señores, coelliños do mundo todos!, non impide que me bañe nel, que lle sinta o cheiro, a frialdade aberta e atlántica nos tornecelos, que lle ouva o crepitar da escuma esvaecendo na capa finísima última que me borbulla na area, que o vexa espello do ceu gris-verde-azul, consoante, e/ou que mastigue contra o padal un consomé-esencia de algas desconstruídas... sen afogar. Meus son os calcetíns de coelliños. Apanda, rapariga!
____________
* En "Os movimentos de ficção", água, cão, cavalo, cabeça do Gonçalo M. Tavares.
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sexta-feira, 28 de maio de 2010
Vai nas asas, nas asas!
―Foda-se, Maria! Quantos golos levas já? Que tens tu hoje?
―Raiva ―rosnei roendo as lágrimas nas entranhas.
―Raiva ―rosnei roendo as lágrimas nas entranhas.
Joguei a raiva nos golos, como se a baliza fosse a morte, a bola todos os poemas que ficaram na gaveta dos futuros inéditos. Depois tomei duche e jantei, sem te dizer, que estranho, não me doem as canelas, ou comi salada, maçã e iogurte, o teu olhar severo, tch-tch-tch, sem te perguntar, e agora, achas que vá de carro ou de mota?, nem responderes tu, vai nas asas, nas asas!
E fui nas asas. Nas asas para alcançar a lua no céu, Senhora da Hora, olho vazo amarelo, mordido pelas nuvens como o meu corpo pálido desfalecido, entre os dentes teus entregue. E num além escaso de ali, ali parei e vi, vivi, ouvi cacarejar a galinha que parece frango, ri, rimos, ristes, riram com ela à gargalhada, enquanto, enquanto de pescoço esticado, peito ondulante, trémula a crista, acompanhava o canto lírico cómico cáustico arquitec-tónico, contra uma sucessão incessante de edifícios hiperconstruídos ou hipogrifos de tijolo pedra betão-batom azulejos de loiça partida ou ira gaudiniana, redondezas arestas em aleatoriedade instavelmente equilibrada: a sustentável gravidade do absurdo. E eu o que? Eu rebentando os silêncios numa risada franca, o brilhozinho da felicidade breve, intervalo da raiva.
Depois a música. A música não são palavras. É batucar de sapatos, coiros, cordas perpendiculares em ângulo obtuso de contrabaixo e guitarra, é paus-baquetas, cascavéis ou castanholas cascateando-me nos sentidos, menos tristes, tronantes, mansos.
E mais tarde as palavras. As palavras são, às vezes, só às vezes, música a duas vozes requintada na quinta das quintas, a dita supradita: Antes a poesia que é a coisa mais séria. Seria?* Só se for de boca escancarada e fôlego no fole dos pulmões em alento feitiço. Assim sim, só.
O final é nunca mais, digo-te, mas é a mim que digo, pensa bem, ao escolheres lugar, mede medita, que os altifalantes são altiloqüentes, altíssonos numa harmonia que é de fábrica, bater de maça, ronco de sirene no nevoeiro, facho na voz, na luz, na luz, na voz, na luz serena, na voz sereia, na calma incerta, sou eu, altibaixos, amputada de ti recente, extrema extremidade fantasma, beijo-te contra o precipício e tu ainda me dizes, então vem, vem-te.
E fui, vim, vim-me, voltei, voltei nas asas das tuas interjeições rotundas, radicais, reverberantes... Só não houve sms que enviar-te, cheguei nem não cheguei, que já não lhe é preciso ao teu descanso.
____________
*Alexandre O'Neill, "Amigos Pensados: Vate 65"
E fui nas asas. Nas asas para alcançar a lua no céu, Senhora da Hora, olho vazo amarelo, mordido pelas nuvens como o meu corpo pálido desfalecido, entre os dentes teus entregue. E num além escaso de ali, ali parei e vi, vivi, ouvi cacarejar a galinha que parece frango, ri, rimos, ristes, riram com ela à gargalhada, enquanto, enquanto de pescoço esticado, peito ondulante, trémula a crista, acompanhava o canto lírico cómico cáustico arquitec-tónico, contra uma sucessão incessante de edifícios hiperconstruídos ou hipogrifos de tijolo pedra betão-batom azulejos de loiça partida ou ira gaudiniana, redondezas arestas em aleatoriedade instavelmente equilibrada: a sustentável gravidade do absurdo. E eu o que? Eu rebentando os silêncios numa risada franca, o brilhozinho da felicidade breve, intervalo da raiva.
Depois a música. A música não são palavras. É batucar de sapatos, coiros, cordas perpendiculares em ângulo obtuso de contrabaixo e guitarra, é paus-baquetas, cascavéis ou castanholas cascateando-me nos sentidos, menos tristes, tronantes, mansos.
E mais tarde as palavras. As palavras são, às vezes, só às vezes, música a duas vozes requintada na quinta das quintas, a dita supradita: Antes a poesia que é a coisa mais séria. Seria?* Só se for de boca escancarada e fôlego no fole dos pulmões em alento feitiço. Assim sim, só.
O final é nunca mais, digo-te, mas é a mim que digo, pensa bem, ao escolheres lugar, mede medita, que os altifalantes são altiloqüentes, altíssonos numa harmonia que é de fábrica, bater de maça, ronco de sirene no nevoeiro, facho na voz, na luz, na luz, na voz, na luz serena, na voz sereia, na calma incerta, sou eu, altibaixos, amputada de ti recente, extrema extremidade fantasma, beijo-te contra o precipício e tu ainda me dizes, então vem, vem-te.
E fui, vim, vim-me, voltei, voltei nas asas das tuas interjeições rotundas, radicais, reverberantes... Só não houve sms que enviar-te, cheguei nem não cheguei, que já não lhe é preciso ao teu descanso.
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*Alexandre O'Neill, "Amigos Pensados: Vate 65"
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terça-feira, 25 de maio de 2010
domingo, 23 de maio de 2010
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