Eu pensei que iria ser triste coisa se um dia me tirassem o café. Digo, triste não, um drama, um drama trágico com
assassínios não sei se em série se em massa e um suicídio, o meu, no fim, para burlar a efémera injustiça humana na estúpida esperança duma misericórdia divina eterna. Como em tudo o mais, enganei-me nos adjectivos.
Quase um ano depois que me fosse diagnosticada uma hipertensão assustadora (pena não vissem a expressão horrorizada do meu médico, que ia caindo fulminado perante a exorbitância das cifras com que me acusava o aparelho de pressão, porque a cena esteve a pique mesmo de ser engraçada), sobrevivemos todos os implicados na quase destruição do meu vício: o médico, que safou por um triz com um sorriso meigo de última hora; empregados de café que, nos primeiros dias da abstinência, traziam nos lábios a frase feita pelo costume ou até já no tabuleiro, ó torturante tentação impediosa!, a chávena pequenina sobre o pires, fumegante e aromática; a caixeira do supermercado que introduzia sem dó na máquina o código do sucedâneo desenxabido e a fila inteira de clientes desacautelados que nunca imaginaram o perto que estiveram de saírem do local sem pagar; eu própria e mais os meus cães, alminhas. Diga-se em honra da veracidade que, advertidos por diligência preventiva dos Serviços Sociais, já na mesma tarde da consulta passou um par da Guarda Civil na minha casa a requisitar as armas mortais todas, faquinhas de untar manteiga incluídas, e mais uns rebuçados suspeitosos de cor castanha que guardava numa gaveta com dobre fundo da secretária.
Com certeza, não renunciei ao da manhã. Reconheço para o meu desdouro, no entanto, que é esse apenas uma água chilra para iludir o olfacto, que me arranca dos lençóis e me conduz como autómato à cozinha numas horas em que ninguém suspeitaria que a alva, nem que seja toldada, possa vir a existir. Vedei-me, porém, os outros milhentos que ingeria ao longo do dia. Eis uma gaja com força de vontade, dirão vocês. E eu digo, não. Digo, eis uma senhora que deixou de ter umas dores de cabeça infames e sem causa até então explicável a acordarem-a mesmo nos dias santos.
Ora bem, isto aqui, o reino do meu corpo, não é fortaleza inexpugnável, antes tem na epiderme do desejo alguma fenda por que em noites extraordinárias, sem exageros, uma ou duas vezes por mês, como quem vai a um lupanar satisfazer os mais elevados instintos prévio pagamento, vence o pecado e peço, sem um tremor de mãos, um cafezinho, diminutivamente e em voz muito baixa, que me sabe à glória bendita. Eu aí fico embasbacada a sentir a fragrância entrar pelas narinas e atingir os capilares minúsculos que nem em dissecação ocular se vêem e noto os espinhos de dentro amolecerem e uma alegriazinha simples de viver mais um dia. E depois, a beberagem mágica enxota-me a soneira, como se tivesse no cérebro um anjo enjoado com o universo todo pelos esvoaçares monótonos que lhe calhou viver uma perpetuidade inteira, quer-se dizer a tempo completo, e consigo voltar a casa sem adormecer ao volante ou sobre o guidão da mota, facto que, julgo eu, contribui um bocado a amortecer a tragédia e à causa do mais um dia.