segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Pecata minuta?

Eu pensei que iria ser triste coisa se um dia me tirassem o café. Digo, triste não, um drama, um drama trágico com assassínios não sei se em série se em massa e um suicídio, o meu, no fim, para burlar a efémera injustiça humana na estúpida esperança duma misericórdia divina eterna. Como em tudo o mais, enganei-me nos adjectivos.

Quase um ano depois que me fosse diagnosticada uma hipertensão assustadora (pena não vissem a expressão horrorizada do meu médico, que ia caindo fulminado perante a exorbitância das cifras com que me acusava o aparelho de pressão, porque a cena esteve a pique mesmo de ser engraçada), sobrevivemos todos os implicados na quase destruição do meu vício: o médico, que safou por um triz com um sorriso meigo de última hora; empregados de café que, nos primeiros dias da abstinência, traziam nos lábios a frase feita pelo costume ou até já no tabuleiro, ó torturante tentação impediosa!, a chávena pequenina sobre o pires, fumegante e aromática; a caixeira do supermercado que introduzia sem dó na máquina o código do sucedâneo desenxabido e a fila inteira de clientes desacautelados que nunca imaginaram o perto que estiveram de saírem do local sem pagar; eu própria e mais os meus cães, alminhas. Diga-se em honra da veracidade que, advertidos por diligência preventiva dos Serviços Sociais, já na mesma tarde da consulta passou um par da Guarda Civil na minha casa a requisitar as armas mortais todas, faquinhas de untar manteiga incluídas, e mais uns rebuçados suspeitosos de cor castanha que guardava numa gaveta com dobre fundo da secretária.

Com certeza, não renunciei ao da manhã. Reconheço para o meu desdouro, no entanto, que é esse apenas uma água chilra para iludir o olfacto, que me arranca dos lençóis e me conduz como autómato à cozinha numas horas em que ninguém suspeitaria que a alva, nem que seja toldada, possa vir a existir. Vedei-me, porém, os outros milhentos que ingeria ao longo do dia. Eis uma gaja com força de vontade, dirão vocês. E eu digo, não. Digo, eis uma senhora que deixou de ter umas dores de cabeça infames e sem causa até então explicável a acordarem-a mesmo nos dias santos.

Ora bem, isto aqui, o reino do meu corpo, não é fortaleza inexpugnável, antes tem na epiderme do desejo alguma fenda por que em noites extraordinárias, sem exageros, uma ou duas vezes por mês, como quem vai a um lupanar satisfazer os mais elevados instintos prévio pagamento, vence o pecado e peço, sem um tremor de mãos, um cafezinho, diminutivamente e em voz muito baixa, que me sabe à glória bendita. Eu aí fico embasbacada a sentir a fragrância entrar pelas narinas e atingir os capilares minúsculos que nem em dissecação ocular se vêem e noto os espinhos de dentro amolecerem e uma alegriazinha simples de viver mais um dia. E depois, a beberagem mágica enxota-me a soneira, como se tivesse no cérebro um anjo enjoado com o universo todo pelos esvoaçares monótonos que lhe calhou viver uma perpetuidade inteira, quer-se dizer a tempo completo, e consigo voltar a casa sem adormecer ao volante ou sobre o guidão da mota, facto que, julgo eu, contribui um bocado a amortecer a tragédia e à causa do mais um dia.

12 comentários:

Rafeiro Perfumado disse...

Podes sempre simular o ritual, mas com chocolate, ou outra treta do género. Acho que é por isso que eu ando a adiar as minhas análises, não quero que me tirem nada!

Abracinho!

Sun Iou Miou disse...

Pois, Rafeiro, mas já estou no desespero de me tirarem o chocolate também. E então... cuidai-vos! :(

Anónimo disse...

Non experimentou o café descafeinado para cafeteira? Disque non hai case diferenza.
Eu abandonei practicamente o café, salvo o do almorzo, efectivamente

Sun Iou Miou disse...

Ese é o único que bebo, Kaplan, o descafeinado de cafeteira ou de máquina, que se di nos bares, para enganar o costume e quecer as mans, pero quen diga que non hai hai case diferenza, que me perdoe, non sabe o que di. A diferenza entre "iso" e um bo café (bo, subliño, e ben feito) é absoluta... Xa só no cheiro hai un mundo polo medio.

mourave disse...

Sun Iou, nessa matéria estou contigo, café é café e pronto. Mas, se era isso que te dava dores de cabeça - e me lembro perfeitamente como sofrias com elas, creio que a renúncia ao arábico líquido é positiva, não é? Mas como não podemos viver sem vícios, que tal buscar um novo? Mas um fácil de encontrar ;-)

Ana Saraiva disse...

Pois... eu por enquanto tenho tensão de periquito mas se algum dia me tirarem o café...ai!Café, pão e queijo, acrescento. Descafeinado, não tomo mas bebo umas cevadas e umas chicórias à noite. Não é mau e engana bem!

Teté disse...

Também adoro café, mas deixei de o beber há muitos anos. Quando notei que me fazia muito mal, sem precisar de ir ao médico para notar...

Enfim, se beber um de quando em vez, não me faz mal, mas já que me desabituei, olha, prefiro continuar sem ele. Contento-me com o cheiro... :)

Beijoquitas!

Sun Iou Miou disse...

Na verdade, Oscar Mourave, deixar muitos os cafés foi unha liberação. Antes não "podia" fazer o que quer que for sem beber um ou dois. Acababa o almoço e já estava pensando em ir ao café ingerir a dose. Agora vou de passeio com os cães: agradecem eles e os meus olhos. Este não é mal vício. ;)

Sun Iou Miou disse...

Ai, ai, ai, Ana Saraiva, que eu também tinha tensão de periquito até que deixei de ter...

Bebes cevadas à noite? E eu que pensei que isso era alimento de burros?! Ou será que os burros são mais inteligentes do que alguns burros pensamos? ;)

Sun Iou Miou disse...

Ai, o cheirinho, Teté, já senti um quase enlevo nalguma esplanada ao passar-me um café ao lado... :)

Ana Saraiva disse...

A cevada é boa e recomenda-se: para jumentos, jumentas e outros quadrúpedes...Até para animais de duas patas!

Sun Iou Miou disse...

Vou então experimentar a cevada, ver se me crescem as orelhas e me fazem voar, Ana. ;)