Gosto de espectáculos à borla, pois. Assisto a um concerto num anfiteatro ao ar livre, pré-instalada na insónia duma noite de verão, e gasto em poemas, ali mesmo na feira do Livro, o dinheiro que pagaria pelo bilhete. Vocês já sabem como eu sou fraca quando passo ante uma capa com um título a dizer come-me: abandono-me à tentação e ainda sucumbo à sobremesa. Além do mais, enfio na mochila os versos assinados, de costas leves por ter sabido engolir no ponto certo as vogais, na breve (breve, pronto, está bem) conversa que mantive com o autor, até conseguir que não desconfiasse do meu sotaque. E parece que deva bastar isto como justificação para o amanhecer de mais um dia.
Os deuses da pátria a cavalgar nos sonhos
Se eu tivesse segura a eternidade [como tenho as contas diárias
para pagar] renunciaria aos livros que ainda tenho para ler.
Nem poria os óculos que me tonteiam a realidade. Nem
ouviria o Peter Grimes que agora oiço -que me interessaria
o bramir da música contra os rochedos da poesia?
Se eu tivesse segura a eternidade [como a geada que esta manhã
me gelou os olhos] deixava-me dormir o dia inteiro
com os deuses da pátria a cavalgar nos sonhos. Talvez
inventasse um planalto qualquer, com uma pedra em forma
de destino e sentado esperasse os animais de Zaratustra
no seu aparecer alto e circular
O animal eólico do corpo. Nuno Higino
Mas há sempre quem julgue que 'gratuito' significa direito a entrar à hora que melhor lhe parece, sentar ao lado da senhora essa da câmara na mão que foi procurar um lugar bem afastado para ninguém a incomodar, falar em voz muito alta para se fazer ouvir perante a barulheira dos gajos que estão para ali à sua vida no palco, deixar às criancinhas aos pinotes e aos berros pela bancada. E eu estou com muito pouca paciência ultimamente. Nenhuma, digo, sou franca. Nem eu me aguento. De modo que, sem mais nem mais, virei-me para os pândegos vizinhos e ―presunções minhas, atingindo o nível avançado das indignações exprimidas naturalmente em língua alheia― mandei-os calar se faziam favor e não se importavam, que eu até a esguichar dardos tóxicos pelos olhos sou bem-educada. Fez-se, portentosamente, o silêncio. Quando mais tarde me lembrei deles, espantada da sua resistência em susterem a léria e as rédeas dos selvagens que criavam, tal qual deusezitos, à imagem e semelhança, descobri que foram pastar embora. Não digam a ninguém mas estou muito à vontade comigo assim intratável.