terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tétrico?

No vestíbulo do teatro, durante o intervalo, a poeta altíssima e futurista de princípios dum século passado olhou para mim, ho-rro-ri-zada:

―Mas que tétrico!

Eu, que estava em ângulo bastante obtuso relativamente aos meus poetas (como a traduzi-los na sombra), alcei a vista num esvoaçar de pálpebras para tropeçar no cenho dela franzido e franzidos a condizer os lábios num o diminuto, que é um u. Respondi de sobrancelhas, no entanto, em arco solene, tenso, dardos nos íris de fingida incompreensão. Depois, leve virar do pescoço, encontrei o olhar impávido do poeta vidente, mais baixito ele, quase do meu tamanho e antiguidade, que apenas uns segundos antes se aproximara saltitando com uma proposta oral cuspida sem preâmbulos ao meu corpo surpreso.

―No fim, iremos beber um coiso ao...
―Não posso eu ―interrompi interceptando o contacto―. Amanhã cedo deverei estar em plena posse das minhas faculdades mentais (e físicas, obviamente) ―E esclareci a seguir―: Vou assinar os meus testamentos, o vital e o mortal.
―Mas que tétrico!
―Não é nada tétrico ―argumentei―. Tétrico seria não poder assinar testamentos. Assinar testamentos é prerrogativa de vivos, de vivos com consciência de sê-lo até um dia, vivos lúcidos com as funções da mente, ainda, em activo.

Havia bem tempo que me rondava pela má consciência a ideia de dar destino final aos meus resíduos sólidos humanos. De aí, na segunda-feira anterior aos factos acima descritos, levantei-me com o pé direito e o firme propósito (sem emenda) de marcar hora no notário, como quem pede consulta no dentista para unha limpeza dental profiláctica. Já no local, agendaram a minha causa para a sexta seguinte, e pelo prezo dum dois por dois (negócios que não têm crise e, consequentemente, não têm saldos), vista a boa disposição com que iria defender a minha dignidade de moritura (que é latinório composto dos vernáculos "moribunda" e "futura") no testamento vital (ou, melhor dizendo, declaração de vontades antecipadas), persuadiram-me a assumir no momento sempre inoportuno a condição de morta pouco chata, escriturando a partilha do legado imenso dos meus bens e males, móveis e imóveis, aos meus ricos herdeiros num testamento por força mortal.

Tétrico? Tétrico seria para os vivos que me iriam chorar, se os houver, terem de lidar com estas burocracias maçantes no dia em que.
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Fora isto, acho que "tétrico" é um esdrúxulo sublime.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O país que eu sou (e outrossim, o corvo)

No fim da tarde saí a ventilar os olhos na penumbra. De porta fora, rachando o silêncio em electrocução única, senti no quintal vizinho corvo doméstico um a gaguejar canto de galo, canto truncado como as suas asas, dele do corvo. Quiçá lhe ia faltando luz para experimentações mais próprias de amanhecida ou colorido nas penas. Quiçá.

Depois foi nada. O corvo prisioneiro desistiu de namorar com galinhas fátuas e juntou-se à afonia absoluta de grilos e melros no lapso quase-invernal do lusco-fusco. Portanto, aconselhei-me a dissimular a desocupação auditiva ligando-me via auscultadores a uma emissora de rádio, séria, culta. Não me largou o eco do corvo.

Pés no caminho cedi ao piano que tocava a direcção dos compassos até que a sonata se extinguiu e uma voz humana entremeou na minha vadiagem pelo assédio sexual do corvo maneta ao serralho desdenhoso do galinheiro. "Os países que falam português...". Abalou-me a sentença. Nem segui o rumo do razoamento possível, atendendo só ao meu espanto inquieto: sempre acreditara que eram as pessoas que falavam línguas, e agora? País eu?!

Era eu país mesmo?! Cachecol meu ao vento, bandeira? Gemido, hino? Lágrimas, marés? Cílios em ondulação, vendavais? País? Este corpo? E se era, era ilha, arquipélago, península, terra de interior que é dizer sem mar? País com deserto até desprovido de oásis real (miragem é que nunca, nunca!, gritei) para solaz de camelos e aventureiros de filme? País tropical, árido, polar? Era país-continente ou país-aldeia? E de ser, seria república, ditadura dura ou branda, monarquia ou reino de taifas? Era estado, se fosse, autonómico ou federal? Era país de povo soberano ou colónia? E já agora, o meu povo, quem era o meu povo? Olhei para os dedos das mãos, que acenaram lealdades mascaradas pelas luvas; e para os pés nos antípodas de mim, obedientes ainda ao roteiro marcado. Perscrutei na querença do coração e ele respondeu com palpitações rítmicas. Admoestei, fazendo-me forte, o fígado, que porfia em ocupar mais abdómen do que lhe pertence. Os rins, porém, nem cessaram de depurar imundices, fieis lacaios mudos. Enclaustrados, os pulmões, ora inchavam ora amarfanhavam como foles de saudades a infundirem-me roufenho ânimo pela traqueia e o nariz outeirinho. E o estômago, pois, digeriu este despautério todo, tão deliciado ainda no chocolate com que o presenteei de tarde que nem um resmungar insolente arrotou. Mamas, quase cordilheiras; veias e artérias, capilares, vasos linfáticos..., os rios e ribeiros! Como é bom este país que sou, concluí, tão despoticamente esclarecida.

(Até que o cérebro, na função de governo oligárquico legítimo e sorrateiro, insinuou se o corvo vizinho, com os seus ensaios na fala dos galos, não era o fervor das galinhas que procurava, antes ansiava também ter língua para ser país. Como eu. Foi aí que começaram as hostilidades no bairro perante a desídia espicaçante das galinhas.)

domingo, 28 de novembro de 2010

As palavras não voaram

Ou de como uma conversa privada virou pública

Era sábado de tarde, ontem, e fui a um encontro de que regressei de certa maneira desiludida. Ou não. Em qualquer caso, culpa minha, que decidi não renunciar ao passeio diário com os cães monte acima, monte abaixo e (uma) margem do rio e monte acima de novo: encostas. Perdi a melhor parte, que era o "Poetas na rua", com o Isaque Ferreira de coordenador, a quem já vi/ouvi várias vezes nas Quintas e (julgo eu que) é um excelente dizedor de poemas, o melhor que eu conheço, ai, isso é: não que o meu universo de dizedores de poemas seja amplíssimo, mas um número nem bom nem mau deles já ouvi. Cheguei, pois, só(-zinha), ao que supostamente era um lançamento de livros, mas foi apenas um desventramento (as palavras, dentro dos respectivos livros, não voaram), lições de teóricos do acto de poemar, estudiosos de vidas e obras, leitores-inquisidores de cartas alheias, já se sabe, e eu sem espingarda nem faca de matar porcos à faca (agora matam-se com pistola e, diz-que ―aos porcos ninguém perguntou nem depois de mortos―, é indolor). Não se assustem: são alergias minhas a aulas de literatura. Nada de grave para o mundo.

Depois estava o Adolfo Luxúria Canibal, que disse quatro ou cinco (ele disse que diria quatro, mas eu contei cinco, só que não contei pelos dedos e eu na aritmética perco-me) estilhaços-poemas do Cesariny (Mário), com piano (que teclava o António Rafael) e contrabaixo (a dedilhar, acarinhar, pelo Henrique Fernandes), mas a música, que era para ser fundo, passou a primeiro plano, abafando a voz. Aliás, estava lá muito público, e a menina Sun Iou Miou, que é meio metro e uma polegada de gente, deixou-se ficar para atrás: gosta de se encostar numa parede, pelo menos uma zona do corpo protegida de alentos e contactos afísicos indesejados, península.

Mas finalmente estive a departir com um casal de amigos (de amigos meus, ambos, digo, que enquanto casal ela é a mulher dele e ele, o homem dela) e apresentaram-me inúmeras pessoas ―a que dei a mão ou beijei, consoante a nada―, que nem irei lembrar a próxima vez que as vir, nem elas, seguramente, a mim. E convidaram-me para ir a Braga, ao Museu de Arqueologia, que haverá lá um recital no sábado vindouro. E eu irei, mesmo que me pese na lembrança demasiado o café que bebi ali, no dia da consagração, quase a correr (acabaste?), porque não se podia fumar dentro.

E foi bom, contudo, com tudo. As palavras afinal ninguém as prende.

Requiescat (así) o que?!








Escultura de Asorey. Cemiterio de Pereiró. Vigo



Róldame así tan descarnada e impúdica ultimamente que xa conto polos dedos nos dedos que me faltan as ausencias deste ano ou campas nas que non agroman flores bravas nin sequera unha pouca serradela para as vacas.

Hai sorrisos que quitan o alento.

sábado, 27 de novembro de 2010

Cardialxias imaxinarias

Resumiulle a aflición que a envolvía: a dor elíptica, radial, torácica, a falta de ar que os tentáculos da ausencia inzaban ásperos, o dominio infrutuoso do tremor na voz que se quebraba case. Só entón el apartou a mirada do ordenador para a pousar clara nos ollos do obxecto-suxeito de estudo. Un instante longo, permeable. E acenou para a padiola. Deitou o corpo ela ás indicacións da auxiliar, espido de cintura para arriba (sendo máis sucinto indicar topless, a intención significativa viraría outra), pinceladas de xel, refucidas as perneiras do pantalón para as ventosas dos tornecelos. ECG en repouso. HTA. O estetoscopio frío sobre as costelas que o lenzo da pel ampara, sen sopros, sen sopros, e no espazo da consulta un silencio estrito de avenidas antes das badaladas aos domingos. E así, o magro posuídor da bata branca de nove a tres marca a ergometría (vulgo, proba de esforzo), cables polo peito en conexión wifi, de pés descalzos, os calcañares a bater doridos na cinta mecánica nun paseo de dimensión única ―temporal―, con destino resultados, aceleración en aumento, paulatino, aumento: rego sanguíneo regular e... Non arritmias, non arritmias, dise sobre a paciente: non datos de cardiopatías. Tamén non consta no informe pericial que haxa corazón vivo alí dentro ou necrótica carne no lugar en que o mar se soña, asinou o doutor, a tantos dun novembro frío.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A noite que había de vir

Os ollos regalados para a eternidade, fose o que fose a eternidade. Era isto tamén: estar sempre atento ao movemento ou a quietude das cousas. E aínda do outro lado se falaba en sono, sono eterno! Que saberían eles, os vivos, da frialdade que se estendía polo tutano dos ósos como fíos de luz branca e aguzada, da mirada presa aos pormenores, do calcar dos pés nas sombras que crepitaban sen as sentir ninguén? A inmensidade acosaba por calquera flanco sen que coubese a parálise. Por iso, cando Xoán Lobo Vieira se detivo ante o trinque que exhibía material de deportes, o desexo se lle instalou nunhas botas de camiñar. "Se tiveses unhas desas", soproulle o pensamento ao ouvido, "andarías o mundo para distraeres o silencio dos días". Entrou na tenda, que aínda estaba fechada, sen parar mentes ás grades e o vidro que se resistían cunha inconsistencia maleable e líquida. Unha corrente de ar. Varreu as paredes punteadas de zapatos desemparellados á busca da bota que vira desde a rúa. Tomouna na man, sopesouna: era leve coma a lembranza dunha voz, só que non era o seu número. Mandou vir do almacén aos seus pés a caixa que contiña o par perfecto, asimétrico, equidistante. Extraíu senllas bólas de papel e enfiou cadanseu pé, con moita cautela para non escangallar a arquitectura primorosa e delicada das falanxes. Ergueuse. Afincouse contra a solidez imaxinaria do chan, protexido. Deu unha volta en círculo. E mais outra invertendo o sentido. Estas, asentiu.

Aínda, antes de saír, lembrouse de escoller un par de pantuflas, azuis, o forro mol de pelo artificial suave, para mellor acompañar as lecturas que ningunha lareira iría aquecer. Logo, saíu á rúa como entrara, sen reparar nos límites. E púxose a camiñar, os ollos regalados e atentos aos instantes, en dirección á noite que había de vir.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

De dúas cores e tantos tons...

Gustaranlle as cores e a ausencia delas, que é como dicir, gustaralle todo o que lle guste e punto. Le, ouve e dá(se) a ler, baixo un título de dúas cores, que me lembrou que aínda non lin a Stendhal. Ou talvez lin, que eu ando nunha de desmemorias tal que un día redescubro un blogue e logo esquezo que xa o redescubrira había nada. Por sorte, ainda son capaz de relembrar o que esquecera, cando o vermello e o negro, está só a unha carreiriña dun can (ou dun galgo).

Digo, grazas!

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Assim ou doutra maneira

Estão os três à mesa da sala e é noite, plenilúnio ou quase ―não vi as fases no calendário―, reparem. Falam, quem sabe?, o que interessa isso?, da inexistência dos deuses ou de como seriam longas as tardes dos domingos do outono não fosse pela play. Dizem eles, Mãe ―é a mãe que põe no mundo os nomes―, o pequenito já nem tanto e como passou o tempo, o mais velho não me quer endireitar essas costas?, valha-me Zeus ou Marte. Olha. Estão à mesa, pois, será a hora do jantar. E eu que nem sei se nos arquipélagos as pessoas comem sopa (caldo, canja ou vichysoise), mas fruta, na sobremesa, é preciso comer sempre. Comam fruta, meninos (os meninos, já disse, que são dois, tem nome, o seu cada; a mãe é a Mãe pela casa dentro). Falam, ainda, de sonhos, sobre as cascas de tangerina e o aroma, e declama cada um o seu, de seu nome, um copo de leite, em letras pequenas de todas as cores: algum dia o mundo será um continente onde a gente possa caminhar, em linha quase recta, sem perder nunca o pé.



(Esta garatuja até poderia estar desenhada em verso lá no Fragmentos, mas ficou aqui feita traços de "prosia" para quem quero e sabe, mulher-pessoa sem fronteiras nenhumas, ilha navegável.)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Em papel de jornal

Ali dizem-me de autora, mas já também nem há nada que são uns dias houve quem me disse de grandíssima puta e intelectual de meia tigela ―isto último que eu até agradeci, porque deve ser bem pesada uma intelectualidade de tigela inteira; puta, mais em grau superlativo, imagino, exigirá, dedicação exclusiva e a fundo, as meias de fantasia e de par em par, nunca tintas―, por isso convém não fiar muito em adjectivações substantivas, que afinal são apenas olhares avessos transformados em chocalhada que só com muita sanha e carinho se combatem. As palavras, já se sabe, leva-as o vento e o caruncho.

Esta léria era só para eu anunciar que está no mundo real (o virtual deverá aguardar ainda) o nº 96 do Novas da Galiza, com alguns dos cadáveres que me aparecem no quintal. Ao pessoal de "A Revista" do NovasGz, nomeadamente ao Alonso Vidal, a minha gratidão por os arejarem antes que apodrecessem.

E pronto.

Equilíbrio


Com certeza perdi faculdades se já não me espatifo como antes. Na primeira aula de hóquei desta temporada não afocinhei uma única vez.

Isso na pista, é claro. Fora custa bem aguentar-se nas curvas e nem sempre se consegue travar a tempo.



[Nada diria se assim fosse preciso. Felizmente aqui não se diz, antes (ou depois) escreve-se, e a escrever(-se) bem se pode alinhavar quaisquer nadas com algumas substâncias ou that's alls que só são recomeços algures.

Ora pensar niente é que não: quem dizer que pensa niente, mente. Nem que esses pensares depois nada sejam, ou ar, até-ar monóxido de carbono, adormecer. Pirar(-se) nem malagradecendo.

Ando a fazer uns belos manguitos à velhice: segunda aula de hóquei de estique nos dentes depois do intervalíssimo verão. Só isto já merece um regresso à vida. E gostar muito do que não se vê.]

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Beleza alucinante






Amanita muscaria. Brincabois

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Se ainda me quiseres levar...





Urueña.
Ermida de Nra. Sra. de la Anunciada

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Tamén do meu silencio










Do silencio como arma que se vira contra o señor Stevens ou contra min: o dominio dos sentimentos, refreados para non afastar (velaí a inxenuidade!) o que se quere ter, mesmo sen sabelo conscientemente. Apréndese tarde, case sempre, que nunca se debe adiar a voz e/ou o xesto precisos.

Máis ben era coma se un tivese à disposición un número interminable de días, meses, anos para resolver as veleidades da súa relación coa señorita Kenton; un número infinito de eventuais oportunidades nas que remediar este ou esoutro malentendido. Daquela non había, con certeza, nada que indicase que tales incidentes manifestamente pequenos ían tornar imposibles para sempre soños enteiros.

Kazuo Ishiguro. The Remains of the Day


Porque no fin será iso o que reste do día: saudades de futuro.

(Subliño que a novela ―digo excelente― é moito máis ca esta pincelada. Deséñase nela un home a desvendarse sobre un escenario moribundo, decote cunha palabra, dignidade, empuñada en van. É, en definitiva, a introspección en voz alta que dá en exhibir a alma coma quem descasca unha cebola ―prosaica mente, a miña― para encontrar na última capa nada ou lágrimas. Lágrimas.)

A dessemelhança da imagem




Ponte Internacional da Amizade
Goián - Vila Nova de Cerveira




Varreu o vento a chuva e as folhas mortas. Sobrou só o silêncio. E uma réplica do real, irreal, fora do alcance das mãos.

Pontes de água que ruem quando a gente as afaga com um sopro, alento último dos pés descalços.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Bom apetite!

Hoje há filme no Poleiro. Para mim vai ser um dejà vu. Entregar-me-ei à observação zoo-ciológica dos animais acomodados nas poltronas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Espuma












TEMPO quase a roçar o nada, espaço que aos poucos em areia se vazia. Um castelo de borbulhas desaba, esvaece. Sal e água, efervescência em ondas que permanece distinta, nos lábios. Mergulho em mim, lutando-me. Branco, e um fundo azul roubado... ou será verde?

Verde, é verdade: as camélias de Aveleda e nós, todos. Transparências.

Riscos






Em Vila Praia de Âncora



É o mundo, a vida. Tem riscos.