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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

São úteis as mentiras piedosas? Artigo de Laura Ferreira dos Santos

“Venci o cancro!” O perigo das mentiras piedosas
O cancro é uma doença que se possa vencer, como uma gripe forte?
Público, 29 de janeiro de 2011


De vez em quando, em revistas da moda ou mesmo em jornais sérios, é dito que alguma personagem conhecida “venceu o cancro”, como se nunca mais se tivesse de preocupar com ele.
No entanto, a medicina sabe que só de pouquíssimos cancros se pode de facto dizer que estão curados. Quanto aos outros, está-se entregue à sorte ou ao que quer que seja. Daí a necessidade de exames de vigilância, pois ao cancro, de vez em quando, sabe-se lá porquê, apetece-lhe voltar. Uma das coisas que mais me impressionou nas leituras que fiz (e faço) sobre “morte assistida” (de que resultou o livro Ajudas-me a morrer?, 2009), foi (é) o facto de encontrar recorrentemente este facto: passados 7, 15, 20 ou 30 anos, o cancro voltou. Quando ainda não passara pela recidiva do cancro da mama, estremecia um pouco: será que...? Depois de ter passado pela recidiva, seis anos depois de o ter “vencido”, pergunto-me que mais mutilações estarão à minha espera e se estarei disposta a submeter-me a elas. Há pouco, uma óptima funcionária da minha Universidade disse-me que o cancro voltara a atingir a mãe, 26 anos depois. Mas, é claro, não estamos em tempos de lembrar a nossa mortalidade (e não é por causa da “crise”...) e temos de ficar pelas histórias cor-de-rosa. Mas serão úteis estas mentiras piedosas?
Para quem tem a sorte de nunca ter passado por um cancro, a ideia pode ser sedutora: “aquilo” é uma doença que se pode vencer, como uma gripe forte, e voltar-se à saúde anterior. Mas quem passou pela experiência do cancro e é metida num follow-up médico até ao fim da vida, ou até ele voltar de forma mais aguda e dar-lhe a morte, sente-se espantada e enraivecida, pois se essa vitória existe, porque é que vê os médicos assustados ou em pânico quando não faz exames regulares? E apetece então voltar ao poema do Messias de Händel e dizer, não O grave, where is thy victory?, mas O cancer, where is thy defeat?
Apetece-me mesmo falar das consequências políticas destas histórias cor-de-rosa, pois ajudam a construir uma sociedade dessolidária em relação a quem teve cancro ou ainda não morreu dele. Pior ainda se a “chaga” não se vê, se a pessoa, vestida, parece não ter qualquer deficiência e se move com aparente facilidade. Quem sabe então das dores que essa pessoa pode atravessar, quem se interessa por saber com que sequelas ficou, em que limbos físicos (para já não falar de outros) é que vive, apesar de o limbo ter sido abolido teologicamente pela Igreja Católica?
Há tempos, uma operária que também “venceu” o cancro da mama, falou-me em desespero da insensibilidade do patronato, que continua a colocá-la em serviços em que está constantemente a partir a prótese externa que usa (e que é cara!). Entendo que a minha jovem aluna me tenha admoestado quando comentei numa aula: “Como sabem, a prazo estamos todos mortos!” “Não diga isso, professora!”, disse ela. Chamada à realidade pelos colegas, o seu princípio de prazer ainda a fez defender-se: “Está bem, mas eu vou ficar para semente e desmentir essa frase!”. Mas deve a sociedade incentivar um tipo de pensamento semelhante?
Às 22h das sextas-feiras, quando uma colega minha que já teve cancro e recidiva sai dos complexos pedagógicos para lá voltar nas segundas, lembra-se sempre com ironia desta frase de “vitória”: como “venceu” o cancro por duas vezes, deve ser considerada mais forte do que qualquer outro colega. Por isso, deram-lhe o pior horário da semana, aquele que, em princípio, não consegue trocar com ninguém. O Victory, why is your taste so bitter?

Laura Ferreira dos Santos - Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e Membro da Comissão de Ética da ARSN (laura.laura@mail.telepac.pt)

domingo, 9 de janeiro de 2011

Às voltas com o testamento vital (ainda) III. O livro de Laura Ferreira dos Santos

Um testamento para o pluralismo moral
(Pré-publicação no Público de 8 de janeiro de 2011)
A investigadora Laura Ferreira dos Santos propõe em Testamento Vital – O que é? Como elaborá-lo?, da editora Sextante, uma reflexão prática sobre as questões ligadas ao final da vida. Dia 13 nas livrarias













Neste ano de 2010 transcorrem vinte anos sobre o famoso Patient Self-Determination Act, que, como se explicitará melhor mais adiante, obrigou todas as instituições de saúde americanas que recebem financiamentos públicos a informarem os utentes que os procuram da possibilidade de elaborarem uma Directiva Antecipada.
É também neste ano de 2010 que transcorrem vinte anos sobre a morte de Nancy Beth Cruzan, em estado vegetativo persistente durante quase oito anos, caso famoso e o único, neste âmbito, que chegou ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Apenas tendo em atenção este estado clínico, refira-se ainda que, neste mesmo ano de 2010, transcorrem vinte e cinco anos sobre a morte de Karen Ann Quinlan, em estado vegetativo persistente durante dez anos (1975-1985), cinco anos sobre a morte de Terry Schiavo, em estado vegetativo persistente durante quinze anos (1990-2005), e quase dois anos sobre a morte de Eluana Englaro, em estado vegetativo persistente durante dezassete anos (1992-Fevereiro de 2009). Todos estes casos tristemente famosos de mulheres inicialmente muito jovens trouxeram, de uma forma ou outra, grandes problemas para os pais e para os tribunais. Quase com toda a certeza, estas jovens não teriam ficado todo este tempo nesta situação clínica de limbo se tivessem atempadamente elaborado um Testamento Vital (ou, sob outra designação, uma Directiva Antecipada).
Voltemo-nos agora para Portugal. Gradualmente ―e mesmo sem ter feito qualquer estudo estatístico a este respeito―, fui-me apercebendo do grande desconhecimento que a nossa população evidencia em relação ao que neste país se foi convencionando chamar Testamento Vital, mas que, mais propriamente, deveria ser designado como Directivas Antecipadas de Tratamento (opção deste livro, adiante explicitada), ou Directivas Antecipadas de Vontade. Bastava ler alguns artigos de jornal, participar em certos programas de televisão, dar uma ou outra entrevista sobre o assunto, para ver que, efectivamente, o desconhecimento era grande, ao ponto de se confundir a legalização destas Directivas Antecipadas com a despenalização da morte assistida (eutanásia e/ou suicídio medicamente assistido).
Depois de, em Julho de 2009, ter sido retirado o Projecto de Lei no 788/X que o grupo parlamentar do Partido Socialista apresentara ao Parlamento e que, numa das suas partes, contemplava estas Directivas, fiquei à espera que outro Projecto fosse apresentado no Parlamento, desta vez inteiramente voltado para elas, pela importância de que se revestem. Não tendo vislumbrado interesse, disponibilidade ou tempo por parte dos Partidos para retomarem o processo, senti que a existência de um livro que ajudasse os cidadãos e as cidadãs a tomarem consciência da importância deste assunto, ao mesmo tempo que lhes fornecia instrumentos práticos para, um dia, fazerem a sua própria Directiva Antecipada, era um contributo importante que podia dar à democracia portuguesa. De facto, a meu ver, tornar os cidadãos mais “reflexivos” (cf. Ulrich, 1999: 80) em relação às questões do morrer e da morte, tornando-os assim também mais conscientes dos direitos e das escolhas que podem ter em fim de vida, é uma forma de aumentar o seu empowerment ou “capacitação”. E uma democracia só pode ganhar em ter cidadãos conscientes das suas escolhas e que lutam por elas, escolhas que estejam de acordo com as suas agendas de valores, não permitindo que, ainda por cima em assuntos tão íntimos como são estes do morrer e da morte, agendas de valores estranhas às suas lhes sejam impostas.
Por mais que alguns e algumas não o queiram, o nosso mundo ocidental vive em sociedades seculares pluralistas. Quer isto dizer que as nossas sociedades não se encontram enfeudadas à defesa de uma qualquer ortodoxia religiosa, possibilitando a defesa de várias concepções de vida que não ponham em causa a liberdade de actuação dos outros. Em 11 de Fevereiro de 2007, o constitucionalista português Vital Moreira escrevia, de uma forma simultaneamente irónica e condensada, que “Laicidade… é quando o Código Penal deixa de imitar o Código de Direito Canónico” (Moreira, 2007).
Nos finais de 1979, esta ideia de termos entrado numa época muito diferente das anteriores apareceu traduzida no título de um livro de Jean-François Lyotard: La condition postmoderne. Segundo este autor, em virtude de razões várias, tinha já soado o toque a finados pelas grandes metanarrativas, pelos grandes sistemas de valores que até aí tinham confortado as pessoas na ideia de que viviam com segurança e sem sobressaltos dentro de uma visão do mundo sem brechas, quer se tratasse de metanarrativas religiosas, políticas ou filosóficas. O que se seguia daí? A hipótese de a actuação e o pensamento performativos ganharem a primazia, actuações e pensamentos apenas regidos pelo que Habermas designaria de razão instrumental, interessados apenas na melhor relação de eficácia entre os input e os output. Mas, por outro lado, não ficando nós abafados pela performatividade, seguir-se-ia a impossibilidade de um qualquer metadiscurso anular, traduzir ou subsumir nele as múltiplas pequenas narrativas que os seres humanos vão constituindo com as suas vidas. Haverá então heteromorfia entre os diversos jogos de linguagem utilizados, havendo também, por isso, ocasião para o aparecimento de diferendos. Neste contexto, a democracia terá obrigatoriamente de se abrir para a controvérsia e a incerteza, não como se esse fosse um destino trágico, mas reconhecendo que, de facto, só desse modo se cumpre como verdadeira democracia respeitadora das diversas diferenças razoáveis existentes dentro dela e, consequentemente, também das diversas narrativas pessoais razoáveis que as pessoas nela vão construindo. Neste sentido, afirma John Rawls que o facto de haver pluralismo razoável é a feliz realidade em que nos movemos, pois é assim que a razão prática funciona quando se move dentro de instituições tendencialmente livres (...).
Vivendo nós em sociedades seculares, o pluralismo moral é inevitável: não há uma única concepção de bem, ou do que deve ser uma vida “decente” ou moralmente correcta, não há uma única concepção do que os ingleses designam como uma good life, não há agora lugar para uma visão moral canónica, no sentido de ser indiscutível e de a todos dever abranger. Por isso, tão-pouco há lugar para a imposição pela força de uma qualquer moral, pois as concepções de bem divergem. Logo, também não há direito a impor pela força um qualquer estilo de vida e de morte, com óbvias repercussões no domínio do fim de vida, ou em situações graves de saúde. Já são muitos a pôr em causa a facilidade com que a classe médica se inclina a dizer que pretende sempre o melhor bem da pessoa doente, quando apenas conhece a sua história clínica, e desconhece completamente (e, por vezes, de forma sobranceira) a sua narrativa pessoal de valores.
Numa época de tanto desenvolvimento ao nível dos cuidados de saúde, nem sempre é fácil identificar o que é fazer bem ou mal à/ao doente. De uma forma notável e simples, o conhecido médico e filósofo H. Tristan Engelhardt, cristão ortodoxo convicto, mas que visa assumir até ao fim as consequências de um pluralismo moral inevitável vivido na contemporaneidade, escreve que a tradicional Regra de Ouro que nos vem do Cristianismo ―“Faz aos outros o que queres que te façam a ti”― não pode ser aplicada de modo cego a todos os seres humanos com quem convivemos, sob pena de se transformar numa regra de intolerância e desrespeito. Como as agendas de valores e expectativas diferem por vezes de modo radical, a Regra de Ouro da beneficência só pode ser: “Faz aos outros o que eles gostariam que lhes fizessem, mesmo que não concordes com as suas opções.” No fundo, dir-se-ia que só a ininteligibilidade absoluta desse “bem” que o outro pretende, ou, de forma diferente, a nossa impossibilidade radical de o ver como “bem” (um suicídio impulsivo, por exemplo), nos pode impedir de também querer o que o outro considera ser o “seu” bem. Como escreve Engelhardt, “Poderemos […] ser proibidos pelo princípio do consentimento de fazer aos outros o que consideramos o seu bem, mas que eles consideram prejudicial” (Engelhardt, 1998: 147).
É neste contexto amplo, ético-filosófico e político, que a temática das Directivas Antecipadas deve ser inserida, temática que já tem dado origem a muita literatura em países estrangeiros (...).
Como se dirá a seguir (...) cada concepção de Directiva Antecipada revelará as economias específicas de verdade, valor e poder de que deriva. Não se trata, pois, de uma mera questão “técnica” ―deixar antecipadamente por escrito as nossas disposições quanto a tratamentos, quando já não tivermos capacidade para o fazer, ou indicar e instruir um/a nosso/a representante ou procurador/a de cuidados de saúde que, nessas circunstâncias, fale em nosso nome, segundo as nossas opções. Não se trata tão-pouco de uma mera questão do chamado biodireito, embora ele tenha aqui um papel importante, tanto mais quanto revelará sempre enquadrar-se em determinada biofilosofia ou biopolítica, ou seja, numa determinada concepção do que é o “governo dos corpos”, dando respostas diferenciadas à pergunta sobre a quem pertence a nossa vida (...). Fundamentalmente, trata-se de, perante graves situações de saúde, respeitar a noção de dignidade que cada um tem, aceitar que, perante a doença grave ou a grave diminuição da qualidade de vida, tanto é legítima a esperança fundada da pessoa doente, como a sua desistência igualmente fundada. O que não é legítimo é tentar impor-lhe uma agenda de valores que não é a sua, mas dos seus familiares ou profissionais de saúde, ainda por cima aproveitando-se então da sua situação de vulnerabilidade. Por isso, como nos diz  Lawrence P. Ulrich, “Minimizar ou não atender a um sistema de convicções considerando-o ‘inapropriado’ viola a dignidade da pessoa doente, pois ataca uma das forças centrais que permite aos indivíduos orientarem e administrarem as suas vidas” (Ulrich, 1999: 91).
Dentro deste enquadramento ético-filosófico e político (...) que pretende respeitar ao máximo a diversidade de agendas narrativas pessoais, procederei etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse). Ao proceder deste modo não estou a limitar a liberdade das/os crentes, mas estaria a limitar a dos/as não-crentes se lhes apresentasse uma orientação de Directivas Antecipadas que apenas tivesse em causa ensinamentos de uma qualquer religião. Para mim, uma Directica Antecipada concreta, precisamente para respeitar a variedade de agendas valorativas pessoais, deve possibilitar que o cidadão, em situação de incapacidade, recuse o que já pode rejeitar quando capaz, e não estar dirigida apenas para situações próximas da morte. (...)
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Testamento Vital. O que é? Como
elaborá-lo?
Laura Ferreira dos Santos
Sextante Editora
240 págs., 15,90€

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Às voltas com o testamento vital (ainda) II. O artigo de Laura Ferreira dos Santos

Fracturas, compromissos e "sabotagens"
Por Laura Ferreira dos Santos
No Público. 3 de janeiro de 2011


O novo parecer do Conselho Nacional de Ética sobre o Testamento Vital

Em 2009, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) desaprovava o projecto de lei do PS que, entre outras coisas, versava sobre as Declarações Antecipadas de Vontade (DAV), construindo todo um parecer assente na desconfiança perante o princípio de autonomia. A este princípio opunha a "intimidade" moral e a confiança criada na relação médico-doente, a partilha da responsabilidade e o papel imprescindível da família na definição do que é melhor para a pessoa doente. A realidade que inspirara o projecto, dizia-se, fora a anglo-saxónica, com maior ênfase na autonomia, quando a nossa "realidade antropológica e cultural" é muito distante dela. Perante afirmações deste género, até apetecia perguntar aos relatores se, tendo sido a democracia uma "invenção" anglo-saxónica, seria também estranha à tradição do nosso país (para outros comentários, cf. Laura Santos, Testamento Vital, 2011).

Entretanto, muda a composição do CNECV, surgem novos projectos sobre as DAV e surge também um novo parecer do CNECV, discretamente, por entre os festejos natalícios. E, desta vez, o CNECV consegue transitar de uma ética sobretudo paternalista, inspirada no princípio hipocrático da beneficência e em certos preceitos cristãos camuflados - no fundo, o ser humano tem sempre a sua autonomia limitada por Deus e, aqui na terra, quem sabe o que é melhor para ele é o médico -, para uma ética secular não-canónica. Passagem pacífica? Quem ler os diversos textos agora disponíveis perceberá naquelas frases compactadas do Memorando (M), que começam de um modo e terminam estranhamente de outro, quantas fracturas e compromissos estão por trás do novo parecer. Seja como for, o novo parecer, e quem se bateu por ele, deve ser saudado pelo seu ênfase na liberdade e sentido de responsabilidade dos cidadãos. Rapidamente, e cingindo-me sobretudo ao parecer:

Autonomia. Apesar do que é dito no M, quando chegamos ao parecer o primado do princípio da autonomia resiste, embora se diga, compreensivelmente, que não pode ser de aplicação absoluta (pense-se, por ex., nas leis do país).

Importância. O parecer diz que as DAV são "um elemento de relevância máxima para o apuramento da vontade real da pessoa".

Narrativa biográfica. Para além das disposições escritas e/ou da designação de um procurador, o CNECV aconselha, na linha de bioeticistas recentes, a introduzir numa DAV uma "história de valores", que possibilite entender melhor as vontades dos incapazes, sobretudo quando as situações são complexas. Parabéns a quem pugnou por esta ideia.

O que se pode recusar? O M não limita as DAV às situações terminais, como o PSD ou o CDS. Há, dizem, o estado vegetativo persistente, as demências, as recusas das testemunhas de Jeová... Penso que, segundo o parecer, se pode recusar quase tudo, desde que não haja desconfianças do carácter genuíno da recusa (feita num exercício de autonomia prospectiva, claro).

Obstinação terapêutica. Depois de o M quase insinuar que as DAV são para resolver este problema, o parecer consegue "relembrar" que nem sequer é preciso uma DAV para recusar essa obstinação. Porém, na sua (só dele?) nota de imprensa, Miguel Oliveira da Silva diz que se pretende com as DAV "evitar a chamada obstinação terapêutica". Há aqui alguma tentativa de sabotagem?

Aconselhamento médico e carácter vinculativo. Estranhamente, o M, ao analisar os projectos, abstém-se de entrar neste ponto crucial - todos os partidos, com excepção do BE, faziam depender o carácter vinculativo de, pelo menos, haver aconselhamento médico forçado. No parecer, surge-nos algo que deve ter sido redigido com pinças: há o dever de os médicos informarem, "mas qualquer pessoa capaz pode optar por não querer ser informada", sem ser penalizada. O que se esperava que se dissesse é que as pessoas podem recolher informações junto de pessoas que não os médicos ou "equipas de saúde". Pois alguém entende que se faça uma DAV sem querer estar informado do que vai fazer e do que pretende? Quantos compromissos para chegar aqui? O que vão os partidos fazer com isto? Obrigar-nos a levar com a vinheta do médico em cima da nossa DAV, se a queremos vinculativa? O parecer não lhes parece dar razão.

Finalmente, apenas um pormenor humorístico: a conselheira Maria de Sousa deve andar tão impressionada com o fenómeno WikiLeaks que fez uma declaração a dizer que não podia aceitar a existência de um registo nacional de DAV em plataforma informática, pois nenhuma pode assegurar confidencialidade. Sugere que voltemos ao papel e lápis? Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Às voltas com o testamento vital (ainda)

Hoje no Público mais um artigo de opinião da Laura Ferreira dos Santos sobre o último e natalício parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida relativamente ao projecto de Declaração Antecipada de Vontades.

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Eu sei: a ligação é só para assinantes. Amanhã ―passou o dia, passou a romaria― eu roubo legalmente o texto.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Eu vinha (mais uma vez) falar da morte

Fiquei perplexa, indignada, irritada. Eu nem deveria falar nisto, mas é Portugal o primeiro que vejo cada manhã quando abro os olhos, o último que vejo à noite antes de os fechar. Dói, dói. Até parece que, desde Lisboa, Portugal é só Lisboa e, mercê que desde ali fazem, um pouquichinho do Porto, esse lugar ao norte, que não é norte, onde nem falar, ao que parece, se sabe. E falando em norte, eu vinha falar da morte. Norte foi o que faltou, no programa do Prós e Contras sobre o testamento vital. Sobre o testamento vital?!, disse. Não. Falou-se de muitas coisas, falou-se de morte ―alguns até de boca pequena, que dizia minha mãe, quer-se dizer de costas―, de testamento vital quase nada. E até as tentativas da Laura Santos, que desesperava na cadeira e nos gestos, em reencaminhar o debate encontraram a oposição da moderadora que achou, sem pudor, que o povinho não iria compreender pormenores. E eu que nem sou muito de defender povinhos porque sempre tive pânico de massas, tenho capacidade de discernir entre povinho e Zé Manel, o vizinho com nome, corpo e alma, que compreende, minha senhora, porque nunca viveu de costas à morte e tem medo não de morrer, mas de morrer como um cão, como morreram sempre os pobres (não tanto os cães...). Estamos a misturar alhos com cebolas, pois não? Cuidados paliativos com testamento vital?

O testamento vital é um acto de amor. De amor pelas pessoas que deveriam tomar decisões duríssimas por nós quando chegar o momento, se nós não as tomarmos antes por nós, previdentemente até quando estamos saudáveis, mens sana in corpore sano, não por força só quando estamos a ver-lhe o cu a coruja! E digo sempre "quando", não "se", reparem. O matiz é importante. Porque se eu, em plenas faculdades mentais (e não por força doente, muito menos terminal) tenho o direito e a possibilidade de decidir o tipo de tratamento que quero ou não quero que se me aplique quando chegar o momento da agonia (e eu, aqui, onde moro, albíssaras!, tenho essa possibilidade e esse direito) libero as pessoas que me querem (algumas há para aí, eu sei, acreditem) de tomá-la por mim.

Assinar um testamento vital, senhor jornalista da plateia, não é desistir de lutar quando o prognóstico me diz que posso lutar e até quando eu quero lutar mesmo que não mo diga, que a Medicina não é uma ciência adivinhatória, embora os avanços permitam, fora milagres, cálculos mais ou menos certos (e eu sei do que falo, quem me conhece sabe que sei). É antes deixar a morte entrar em mim em silêncio quando chegar o momento. É evitar sofrimento não só em quem assina mas também nas pessoas que nos querem e queremos, nos médicos que nos acompanharam (e enfermeiros, auxiliares, pessoal da limpeza e do serviço de comidas...)... e aqui é onde entra a necessidade dos cuidados paliativos, só aqui, e não tem tantos por centos.

Eu, digo-vos, isto é mesmo milagre, até tenho dias em que vou para a cama com respeito por algum padre.

E agora vou trabalhar, me desculpam, eu por mim ainda falava muito e mais nisto, mas não tenho pensado morrer ainda e é preciso fazer pela vidinha e por levantar o país, um país qualquer.

(O desabafo contra os salteadores de caminhos fica para outra hora.)

domingo, 24 de outubro de 2010

Onde o mar começa



Começo onde acaba a tranquilidade
e termino onde o mar começa

Ademar Santos. Descansando do Futuro



Sei lá, talvez, era mesmo, afinal, de emoção que eu tremia e por isso não senti o frio a agarrar-me nos ossos.

E na sexta levarei contigo os ramos verdes de camélia ao breve território da espuma. Nenhuma flor.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

De violências verbais

[Repórter TVI: O céu visto da terra, de Ana Leal]






Escultura de Buciños 
Morto pela sua própria sombra?


Não gosto de censurar o que acontece em terras em que não moro, mas por vezes desata-se uma revolta cá nas tripas de moi même pelo vejo e ouço que nem sempre dá para um poema, antes dá para fazer abrolhar em mim reacções duma brutalidade em que não me reconheço. Verbi gratia, ontem ouvi num programa de televisão falar uma senhora ministra da Ignorância e a Insensibilidade com tal arrogância e desprezo pela dor, pelos sentimentos, pela vida e a morte das pessoas ―pessoas com rosto, pessoas com lágrimas secas sobre a pele seca― que me veio aos dedos uma vontade sinistra de se fecharem em punho, um desejo do punho de se transformar em trompada contra a fuça da senhora, uma trompada única e contundente que lhe partisse o nariz e lhe escachasse os óculos, pelo prazer de ver, depois, o sangue a rebentar-lhe pela boca dentro e o queixo abaixo e os vidros estilhaçadinhos espetados nos olhos inúteis dela... sem anestesia.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

“Testamento vital” do PS: só para pessoas já doentes?

Por Laura Ferreira dos Santos
Sexta-feira, 08 de Outubro de 2010
Opinião

A experiência holandesa diz-nos que, com a ajuda médica, os “testamentos vitais” não melhoram significativamente

Quando muitos esperariam que, depois das críticas ao projecto do PS de Maio de 2009 que, entre outras coisas, legalizaria a elaboração de Declarações Antecipadas de Vontade (DAV), o partido enveredasse por um projecto diferente, apenas dedicado a essas directivas ou ao chamado “testamento vital”, acaba agora por nos revelar um projecto quase idêntico. Assim, mais uma vez, dos 23 artigos dedicados aos Direitos dos doentes e ao consentimento informado, apenas seis têm que ver com as ditas DAV.

Detenhamo-nos no n.º 5 do art. 13.º: “A eficácia vinculativa da declaração antecipada depende, designadamente, do grau de conhecimento que o outorgante tinha da natureza da sua doença e da sua evolução; do grau de participação de um médico na aquisição desta informação; do rigor com que são descritos os métodos terapêuticos que se pretendem recusar ou aceitar; da data da sua redacção; e das demais circunstâncias que permitam avaliar o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade”.

Já li outras legislações sobre este assunto, mas nada que se equipare a estas exigências, exceptuando a legislação austríaca (de 2006), país em que a classe médica possui um estatuto social intocável.

Algumas considerações.
A) Qualquer cidadão capaz deve poder efectuar uma DAV, independentemente do seu estado de saúde. Nesse caso, qual a necessidade de exigir que evidencie (como?) o grau de conhecimento da sua doença? E se não está doente? B) Embora, idealmente, se pudesse pensar que a DAV feita com a ajuda de um médico melhoraria a sua qualidade, a experiência holandesa diz-nos que, com essa ajuda, as DAV não melhoram significativamente: como até os médicos holandeses, tidos por pouco parentalistas, não desejam ver-se mais tarde vinculados a uma DAV, não investem muito na sua elaboração; e como tão-pouco querem um dia sentir-se “estorvados” por um procurador de cuidados de saúde, tão-pouco fazem sentir ao utente a necessidade de o nomear. Por outro lado, o Código Deontológico dos Médicos portugueses prevê, no seu art.º 49º, que à recusa informada de tratamento por parte do doente pode o médico responder com a recusa de continuação de cuidados, não se falando, ao longo do código, da necessidade de concertar sempre com o doente planos terapêuticos alternativos. É a estes médicos, tão mal preparados para aceitarem a recusa de um tratamento, que se vai pedir que ajudem a elaborar uma listagem que é sobretudo de recusas? Não se vê o constrangimento em que se coloca o cidadão? E quantos portugueses têm médico de família? C) Para além de provar o grau de conhecimento que tenho da natureza da minha suposta doença, para fazer uma DAV vinculativa tenho também de provar com que grau de convicção a fiz. Como? Há “convictómetros”? Vou estar mais uma vez dependente de um médico? Do Ministério Público? Porquê este “encarniçamento hermenêutico” infantilizante e policial? D) Deve-se dizer claramente se uma DAV é válida até à morte ou tem de ser renovada com uma periodicidade fixa, não deixar isso ao livre arbitro de um médico. E) Para ajudar a identificar e a pensar no que se recusa ou não, e em que situações clínicas, essas situações e respectivos tratamentos devem estar discriminados (necessidade de formulários bem feitos, como os da Andaluzia).

Como já escrevi, o “testamento vital” deve ser instrumento de uma democracia maior no domínio da defesa das convicções pessoais no âmbito da saúde. Pelas limitações que apontei, não vejo como este projecto possa cumprir esse objectivo.

Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN (laura.laura@mail.telepac.pt)

domingo, 1 de agosto de 2010

Artigo roubado, porque sim

Hoje apeteceu-me trazer aqui este artigo de opinião da Laura Ferreira dos Santos editado no jornal Público de 31 de Julho 2010

A beleza dos funerais laicos

Não é fácil fazer um funeral laico a norte do Porto. Falta de liberdade religiosa para os não-crentes?

Através dos media, tenho observado a beleza de alguns funerais laicos, como o de Saramago: os/as amigos/as e os/as estudiosos/as podem falar à vontade de aspectos da obra, do trabalho ou do carácter de quem morreu. A pessoa falecida tem direito ao seu nome, à sua biografia, a testemunhos sobre o melhor da sua vida. De funerais laicos muito mais discretos dizem-me que correm de modo semelhante. Ora, eu nunca vi acontecer isto num funeral religioso católico: quem morre é reduzido a um cadáver a enterrar, e não a uma pessoa, a uma tessitura de afectos, compromissos e paixões, por mais humilde que tenha sido a sua vida. De repente, deixa-se de se ser aquele homem ou mulher que os familiares e amigos recordam com afecto, e de que tantas histórias conhecem, para se ser apenas um "servo de Deus" (mas até Cristo disse: "Não vos chamo servos, mas amigos") que exemplifica a vulnerabilidade humana e serve para dizer que a vida terrestre é uma completa miséria. Mesmo quando dizem o nome do "servo", custa aos familiares e amigos ver como o padre mostra não saber ao certo onde o apontou. Afinal, aquele é um cadáver de quem não sabe nada, por que raio havia de ter um nome? O protocolo que rege os funerais católicos só diz que aquele corpo tem de ser enterrado com umas tantas orações e bênções, não fala de afectos nem de ternura. Afectos e ternura não se protocolam, logo não existem nas instituições que tanto amam os protocolos.

O meu único Irmão, com quem tinha um elo mágico, morreu-me abruptamente há pouco, apenas com 57 anos. Apesar de ele ser não-crente, quis fazer-lhe um funeral católico. Era como se, desse modo, tentasse acompanhá-lo a outras margens de ternura e serenidade. Ele dizia que, se houvesse deus, ao menos que fosse parecido com o meu, por isso achei que compreenderia, ou perdoaria, o meu gesto. Mas tive as minhas dificuldades. Sim, poder-se-ia fazer funeral católico por não-crente, mas, atenção, não por suicida; os alunos dele, que encheram a igreja, poderiam ler antes do final da missa um texto que tinham escrito em sua memória, mas o pároco não podia permitir que a missa fosse de "homenagem". Quanto a outro padre que concelebrou, os alunos estariam "riscados", eu é que disse peremptoriamente que já obtivera autorização para eles. E, sem entender que eu tivesse escolhido para o meu Irmão um caixão sem cruz, o pároco fez-me desejar fazer-lhe um funeral laico. Só que já não tinha tempo, e não é fácil fazer um funeral laico a norte do Porto. Falta de liberdade religiosa?

Estavam na igreja amigos/as que poderiam ter de facto ajudado naquela despedida tão abrupta, cada um falando de uma faceta do Ademar, que até era bem conhecido na cidade e que há anos editava o seu singular Abnóxio. A antiga directora do Mosteiro de Tibães pegou na sua urna, em memória de toda a luta que ele travara pelo mosteiro. Mas ficámos sobretudo a cumprir um protocolo. E foram os seus alunos a personalizar a cerimónia, num texto lido com pressa por causa da emoção e que a todos comoveu. Muitos desejaram bater palmas. Era a emoção contida que se queria manifestar, pelos alunos e pela despedida. Mas estava-se a cumprir um protocolo, e toda a gente se inibiu.

Alguns padres cultos portugueses desfazem-se em elogios a Gran Torino. Não entendo: Gran Torino abre com uma cerimónia de funeral em que, perante a homilia do jovem padre ingénuo, o actor Clint Eastwood exclama baixinho, com despeito: "Jesus!" Acharão estes padres cultos que procedem de modo muito diferente?

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Laura Ferreira dos Santos é docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN