terça-feira, 26 de outubro de 2010

Eu vinha (mais uma vez) falar da morte

Fiquei perplexa, indignada, irritada. Eu nem deveria falar nisto, mas é Portugal o primeiro que vejo cada manhã quando abro os olhos, o último que vejo à noite antes de os fechar. Dói, dói. Até parece que, desde Lisboa, Portugal é só Lisboa e, mercê que desde ali fazem, um pouquichinho do Porto, esse lugar ao norte, que não é norte, onde nem falar, ao que parece, se sabe. E falando em norte, eu vinha falar da morte. Norte foi o que faltou, no programa do Prós e Contras sobre o testamento vital. Sobre o testamento vital?!, disse. Não. Falou-se de muitas coisas, falou-se de morte ―alguns até de boca pequena, que dizia minha mãe, quer-se dizer de costas―, de testamento vital quase nada. E até as tentativas da Laura Santos, que desesperava na cadeira e nos gestos, em reencaminhar o debate encontraram a oposição da moderadora que achou, sem pudor, que o povinho não iria compreender pormenores. E eu que nem sou muito de defender povinhos porque sempre tive pânico de massas, tenho capacidade de discernir entre povinho e Zé Manel, o vizinho com nome, corpo e alma, que compreende, minha senhora, porque nunca viveu de costas à morte e tem medo não de morrer, mas de morrer como um cão, como morreram sempre os pobres (não tanto os cães...). Estamos a misturar alhos com cebolas, pois não? Cuidados paliativos com testamento vital?

O testamento vital é um acto de amor. De amor pelas pessoas que deveriam tomar decisões duríssimas por nós quando chegar o momento, se nós não as tomarmos antes por nós, previdentemente até quando estamos saudáveis, mens sana in corpore sano, não por força só quando estamos a ver-lhe o cu a coruja! E digo sempre "quando", não "se", reparem. O matiz é importante. Porque se eu, em plenas faculdades mentais (e não por força doente, muito menos terminal) tenho o direito e a possibilidade de decidir o tipo de tratamento que quero ou não quero que se me aplique quando chegar o momento da agonia (e eu, aqui, onde moro, albíssaras!, tenho essa possibilidade e esse direito) libero as pessoas que me querem (algumas há para aí, eu sei, acreditem) de tomá-la por mim.

Assinar um testamento vital, senhor jornalista da plateia, não é desistir de lutar quando o prognóstico me diz que posso lutar e até quando eu quero lutar mesmo que não mo diga, que a Medicina não é uma ciência adivinhatória, embora os avanços permitam, fora milagres, cálculos mais ou menos certos (e eu sei do que falo, quem me conhece sabe que sei). É antes deixar a morte entrar em mim em silêncio quando chegar o momento. É evitar sofrimento não só em quem assina mas também nas pessoas que nos querem e queremos, nos médicos que nos acompanharam (e enfermeiros, auxiliares, pessoal da limpeza e do serviço de comidas...)... e aqui é onde entra a necessidade dos cuidados paliativos, só aqui, e não tem tantos por centos.

Eu, digo-vos, isto é mesmo milagre, até tenho dias em que vou para a cama com respeito por algum padre.

E agora vou trabalhar, me desculpam, eu por mim ainda falava muito e mais nisto, mas não tenho pensado morrer ainda e é preciso fazer pela vidinha e por levantar o país, um país qualquer.

(O desabafo contra os salteadores de caminhos fica para outra hora.)

6 comentários:

Rafeiro Perfumado disse...

Arranjaram um nome fino para a eutanásia? E tu livra-te de querer morrer, vou aí acima amaciar-te o lombo!

Abracinho!

Sun Iou Miou disse...

Eis a questão! Eutanásia é outra coisa, Rafeiro. Se se falasse mais nisto, compreenderias a diferença, que já não é de alhos para cebolas, mas de cebolas para frangos ou até para catedrais. Pelo amor de deus ou de quem se quiser!, eutanásia e testamento vital não têm nada a ver.

Eu não quero morrer por enquanto mas hei-de morrer, e espero e quero, dignamente.

Anónimo disse...

Medo da morte não tenho mas sim de sofrer e fazer sofrer os outros. Apesar dos meus fracos conhecimentos, entendo como cuidados paliativos saber viver com dignidade.
A Sun Iou Miou escreve de uma forma muito peculiar :)
Bom trabalho e beijinhos :)

Teté disse...

Começo por dizer que nunca vejo esse programa, que acho que é do mais chato que se exibe da TV - falam muito, adiantam pouco e no final não se chega a nenhuma confusão. Final esse, cerca de 2 a 3 horas depois...

Vi o início, até por me lembrar que já tinhas falado nisso e na tal Laura Santos. Mas também já sabia a diferença entre testamento vital e eutanásia - e, a bem dizer, até sou a favor desta última, quanto mais do testamento vital! Que mais não é que deixar os doentes terminais morrer, sem recorrer às máquinas para lhes prolongarem a vida/sofrimento por tempo indefinido, concedendo-lhes apenas medicamentos para aliviarem as eventuais dores. Não cabe na cabeça de ninguém reanimar doentes destes artificialmente - quando a vida já é sinónimo de letargia.

De qualquer forma ainda bem que não vi, que esse género de paternalismo de que o "povo não percebe" irrita-me solenemente - o povo está acordado até altas horas a ver aquilo? E se não está, os que estão a ver, que possivelmente estão mais interessados pelo tema, não percebem? Se só passasse na TV coisas que toda a gente percebe, ficaríamos limitados aos desenhos animados sem legendas! Haja dó!

Beijoquitas!

Sun Iou Miou disse...

Não há, julgo, vida com dignidade, Capricho, sem morte digna.

Peculiar a minha escrita? Ui, já as ouvi piores. Já uma vez a qualificaram de "português ligeiramente danificado", he!

Sun Iou Miou disse...

Apenas vejo televisão, Teté, mas com certeza haverá programas mais chatos, que não é pouco. ;)

Independentemente da opinião que se tenha da eutanásia ou até o suicídio assistido, não se pode confundir nunca com o que é um testamento vital.

Como diz a canção, se houvesse quem me ensinar, quem aprendia era eu. Haja quem nos ensine!