segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Do meu ser não-ignorado e ignorante (e do Manuel Bandeira)




Arnaldo Saraiva, no interior da Porta Treze, debulha a "Poética" do Manuel Bandeira




Em convite a-solene animaram-me a entrar para a Porta Treze, mas quando fui tirar do armário o manto da invisibilidade para alindar-me num desaparecimento ténue, descobri que as traças deram (boa) conta dele e apenas uns fios, como raros cabelos de múmia pré-histórica e voraz, baloiçavam no cabide. E eu disse, ora, tem de ser. E foi. Fui, digo, como eu sou, de mínimo corpo inteiro. E já encontrei ali, na rua, afincado contra a parede dum treze inexistente que se fez real o Nuno Higino, apresentei-me, que eu sou quem sou e tal, e trocámos sorrisos, claro, claros. E logo a seguir estava o Antero, o professor que não me deixa chamá-lo de professor, ainda sendo ele professor mesmo, na mesma, e nem meio passo mais à frente as mãos fortes e os olhos luminosos do Luandino a acolher-me. Aí eu pensei, lúcida, será que as traças foram criadas há milénios para um fim concreto na minha vida?

Com certeza, eu estou a falar aqui de mim, este é o meu diário. Por isso irei também notar que permaneci quieta, a casa do cérebro este de portas e janelas escancaradas, a ouvir e ver como o Arnaldo Saraiva debruçava de palavra e gestos a sabedoria dele em volta do Manuel Bandeira sobre a minha ignorância, essa que quero conservar sempre para sempre e a cada pouco espantar-me na felicidade do muito que ainda, hoje e amanhã, tenho para aprender.


Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

―Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Manuel Bandeira

2 comentários:

Teté disse...

Claro que todos temos a aprender, todos os dias (bem, nem todos!) durante o resto da nossa vida...

E com os poetas, mesmo que fartos de lirismos, não é excepção! :)))

Beijoquitas!

Sun Iou Miou disse...

Pois, Teté, às vezes é preciso descansar para carregar as baterias. ;)