sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Um porco e também pessoas

Na lagoa, a puxar pelos pés do porco de um lado para o outro, estavam dois putos caxineiros a nadar naquela porcaria como se fosse a piscina municipal. Boquiabertei total. Nadavam à pescador, de um modo desenrascado e trabalhador, capazes de ficarem com uma mão livre e pegarem em coisas na água atirando-as de um lado para o outro. Diziam: quando chegar aí acima vou-te matar.

valter hugo mãe. Excerto de "aprender com os animais". 27 janeiro de 2011. Texto escrito para a sessão Caxinas para Capital das Quintas de Leitura do Teatro do Campo Alegre

Era assim: como se estivéssemos no mar, vagas de luz numa tela inventada, e houvesse uma sereia que nos encantasse ao piano, a gente rastejava com a cabeça (cada pessoa a sua) bem levantada, cobras enfeitiçadas éramos, como quem fareja no sal do ar o cheiro da terra sem sucesso, como quem perscruta na espuma duma onda que rebentou areais de praia e palmeiras ou eucaliptos. Havia também sobre o quadrado azul de lagoa em calma ―porco nenhum à vista, menos morto― poltronas dum cinema-teatro antigo para os corpos magros dum tempo em que se distraía a fome adolescente em filmes de motoristas e senhoras insaciáveis. E havia mais, havia redes em que nos deixávamos pescar, como caranguejos tóxicos, simpáticos e inocentes, com um sorriso nas bocas desdentadas de que a natureza nos não dotou para modelarmos a irreverência das gargalhadas. Das poltronas nasciam vozes que desenhavam a nostalgia duma infância de medos assustadores em território ignoto, aquelas selvas de monstros (porcos ou gente) e a mais terrível puberdade de que um velhote perseguidor tinha saudades. Fartámo-nos de rir.

No intervalo saiu o pessoal à rua a apanhar fumo e frio e vistos de dentro através da vidraça, os braços bem colados ao abrigo, os pés saltitantes, eram peixes que abriam muito a boca à procura dum sonho ou de plâncton. Entre o interior e o exterior gerava-se, a despeito da temperatura, uma trasfega de copinhos com um líquido que pelo cheiro que ia semeando em volta e a cor de madeira nobilíssima e envernizada se diria o vinho que os ingleses chamam de port e bebem como se deles fosse.

Ainda mais tarde acabei por pensar que a felicidade (haja quem me gabe a paciência, que eu hei-de gabar a de vossas excelências) era ali, a ouvir um gajo de barbas em rosto de criança e olhos maduros, voz e piano fundidos como se ele e o instrumento fossem o mesmo animal vivo, que até me apeteceu chorar e só no chorei por não sorver forte e feio o ranho ou estragar a maquilhagem. Iludi as lágrimas com o mar azul sulcado de algas vermelhas que assomava à parede, também o calidoscópio camaleão, que me regressava a um estado de embriaguez sentimental e mansa em que a felicidade era mesmo ali, entre histórias de música, pedidos de casamento sem hora nem medida, cuspidelas (ou coisa pior) desde o poleiro e um porco morto, inchado e imperfurável de tão duro, a boiar na memória.

4 comentários:

Oscar Mourave disse...

A minha insônia, recompensada!

Sun Iou Miou disse...

Terias gostado imenso do espectáculo, Oscar. Só podias.

Um beijo cheínho de saudades.

Anónimo disse...

Non será mellor un pouco de erotismo?:
http://erosgalica.blogspot.com

Sun Iou Miou disse...

Pois nada, Anónimo. Terá que haber de todo. A min... o erotismo, coma o paxaro, un e na man.