domingo, 23 de agosto de 2009

Lucubrações para uma história sem final










Eu estava frente ao rio; dizer o contrário seria dizer o contrário, até mentindo. Era tarde de domingo e acompanhava o café dum gelado de pau, sabor artificial de morango por dentro, chocolate por fora que nem que fosse couro de mundele, cangundo mesmo, só para a gente reconhecer que era o dia do senhor, não dum senhor qualquer, mas dum senhor gelado. Como é o meu costume, ia dissimulando a preguiça num livro, teimosia viciosa minha na aprendizagem: mesmo quando parece que se descansa continua a cabeça fervilhando, incomodando os neurónios poucos, parvos. Nesse dia, que era de tarde, já disse, não lia uma história qualquer, nem era negócio fingindo-se ócio num fundo de escritório azul de águas levemente encrespadas na maré enchendo-se da foz. Não, era mais o Luandino, meu mundo e à parte, me infectando. E aí tive de parar, porque dos malabarismos dele ia-me nascendo um outro enredo diferente no pobrezito, no minhoca que era ao câmbio comparativamente, mas de invenção por mim própria vivida a me fazer comichão nos dedos. Assim, não adiantava continuar na leitura nem adiantava resistir-se à escrita: de caneta e caderno sobre a mesa, estava eu sonhando-me como nem havia tantos dias estivera na Nova, em rumo previsto à Invicta, num banco da Estação do Caminho de Ferro do Centro Coordenador de Transportes (ora, já se viu nome longo e paralelo para dizer afinal comboio lento-lento que nem caracol sobre cinzas?). Estávamos eu e o calor, que era este de caírem os pássaros em picado, de estalarem as pinhas a semear para o futuro agulhas muitas, que por cá chamam garuma, palavra mais rascante que arume para figurar num hino que se cante de peito enchido, sobre tudo se as ditas finas folhas conformam harpa do vento verdescente.

—Bilheteira cá é serviço que inexiste —disseram-me quando perguntei no relato que me vinha ao encontro—. O bilhete só dentro se compra, pagando no revisor: assim sempre tem tempo de recuar enquanto não sobe.

Pois, pacientes e tranquilos, aproveitámos a espera de não nos arrependermos, uns tricotando, outros lendo, outros pasmando, quem escreve agora revendo um texto moribundo cuja cura me encomendaram, numa tentativa de endireitar estruturas contorcidas e estridentes, mas já no desânimo que vislumbra o esforço bate-que-bate na vaidade cega de quem nem sabe que não sabe: felicidade dos néscios.

Mas pronto, não há desprazer que cem anos dure. Quem já me leu nas linhas e nas entreestrelinhas sabe que o meu magnetismo entre bêbados, drogados, tarados e loucos, em geral e muito particularmente, equivale a merda para as moscas. Assim que ele venha, seus olhos azuis enormes vidrados, a voz atrapalhada na língua pela acumulação de substâncias tóxicas ingeridas e pior, as que se ansiavam, a me oferecer léria de graça, nem que eu estivesse carente de palavras derreadas. Até que enfim, duas vizinhas da Aldeia que iam à praia a Âncora (Vila idem de) apareceram a me dar conversa séria: sol, cremes, toalhas coloridas, idas e vindas, carros nem vê-los, engarrafamentos e manobras de estacionamento conjugam-se em particípio passado, e tarifa reduzida para idosos vive l'Europe!, o comboio é que é bom!

Bom mesmo foi que afinal desceram e me deixaram sozinha naquele forno sem ar, nem acondicionado nem natural. Dizem que somos escravos do ambiente à medida, mas em tempos, se o dia estava escaldante, as janelas abriam-se e entrava uma brisa a aliviar a temperatura excessiva por elevada e apareciam pelos apeadeiros vendedores a apregoarem refrescos de potabilidade duvidosa, que em troca duns trocos paliavam desidratações: no mínimo a morte adiava-se até a aparição dos primeiros sintomas da caganeira. Agora não, a gente fica assepticamente ilhada entre vidros fixos, a cozer no próprio molho e a lume lento, não por baixo mas por vagaroso: duas horas cem quilómetros, e isto no rápido! Quem quer experimentar no Foguete de Prata?!

Soube logo que entre outros efeitos colaterais directos, uma parte de cérebro nunca mais se me recuperou, derretida, como o gelado que me caiu sobre as calças, na margem do rio, e me acordou, pondo fim a estas lucubrações, que não à história.

6 comentários:

Anónimo disse...

Pelo amor de Deus... onde é que a menina esteve estes dias todos, que o cabaré tinha fechado e não havia jeito nem invitação nem chave para cá entrar?!!
Fico já tranquilo: desta não foi ^_^

Sun Iou Miou disse...

Xa nos coñecemos a estas alturas, Kaplan, non lle debera estrañar: ás veces dáme volta a cabeza e logo cústame levala ao sitio. (`_^)

Vostede non se me agoníe, que se un día fago as maletas, como lector fiel, doulle o "desenderezo" novo.

Rafeiro Perfumado disse...

Estava a ver que tinha de chamar a PJ para abrir o tasco, pá... voltas a fazer outra e apanhas no lombo!

Sun Iou Miou disse...

Atrévete, Rafeirito, que levam com uma frigideira na carola, tu e os bonitãos da PJ!

Vá, dá cá um abracinho, que ainda se pode sem irmos presos.

Euzita Verdita disse...

Digo-te sinceramente, que bom ler-te novamente. E desde já ao ler esse post, deu-me desejo louco por um gelado de TAMARINDO. Amanhã será então uma das minhas refeições,hihihihihi. Bjocas

Sun Iou Miou disse...

Bom é ter pessoas a lerem-me, Euzita Verdita! Tenho de experimentar um dia o gelado esse de tamarindo... e até de pitanga ou gajaja, mas antes vou ter de poupar para a viagem, hihihi!

Beijinho