quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A velha polaca. Capítulo IV

Aquela manhã notara-a esquisita. Tinha um brilho especial nos olhos que nunca lhe vira. Levantara-se a trautear e estava solícita em demasia. Deu-lhe um beijo de bom dia, meiga, a sua princesa. Ele sorriu, mas por dentro alguma coisa lhe disse que acabava de perde-la. Não conseguiu falar. Esperava que ela, dum instante a outro lhe espetasse o punhal no peito, não imaginava ainda o comprimento da lâmina, a fundura da ferida que já nunca estancaria, sangue do seu sangue. Porque os sintomas eram inequívocos: estavam escritos em qualquer manual da matéria, e ele, que como era lei de vida também sucumbira a essa doença feroz, conhecia-os de cor.

Mas correu a manhã e ela não lhe desvelou o seu segredo, aumentando a angústia que o roía com dentes de arminho. Ele também calava, não provocava respostas, não adiantava a morte, sem imaginar sequer a crueldade que a havia de acompanhar. E assim passou uma semana. Uma semana de olhar para o relógio quando ela se atrasava, uma semana de janelas escancaradas pelas que entrava radiante a primavera, sete dias, sete noites a sentir crescer o cancro, os ciúmes, e o pior: os remorsos de sentir ciúmes.

Quando no sétimo dia entraram as primeiras luzes da manhã no dormitório sem persiana nem cortinados filtradas pelas folhas da faia, soube que o mundo estava para afundar à sua volta.

—Papai —disse sem preâmbulos, e nunca até então o magoara aquela palavra, que foi a primeira nos seus lábios de criança e seria a derradeira que lhe ouviria na voz de mulher a se afastar para sempre.

Ele alçou a vista do jornal no que dissimulava a pena, no que lia o seu necrológio, perdido entre tantos, tanta gente morre cada dia. Não falou, aguardava —ainda ninguém inventara as palavras que disfarçassem a tristeza de alegria.

—Queria-lhe apresentar um amigo. Se lhe parece bem, esta tarde, depois do almoço, há de vir para o café.

E continuou a falar, enquanto cada som, cada nota que entoava, eram mil agulhas de aço que o furavam, milhões de lascas de vidro a se lhe pintar de vermelho no peito, nas pontas dos dedos, nas coxas, na língua, na menina dos seus olhos que se cegavam, ela sem perceber que falava com um morto, ele ignorando que já secara, que não lhe restava uma gota de seiva nas veias.

Dez mil e oitenta minutos depois despedia-a, a sacudir no ar um pano que parecia branco e era a sua alma de luto que estremecia em estertores; ela a agitar pela janela o ramo que desprendia pétalas de flor de laranjeira, flocos de neve resplandecentes como o sorriso que se lhe abria ao gritar, "Adeus, papai!". Ao longe ia se apagando a placa de letras brancas sobre fundo preto, preto, preto, enquanto esvaecia o P preto, preto, preto, emoldurado por uma elipse branca, no desportivo vermelho que o fulminou na calçada ante a casa virada para o Báltico na que nasceram e morreram inumeráveis gerações de Bukovskis.

11 comentários:

Tá-se bem! disse...

Escreves tão bem, que fico sem jeito de dizer palavras vãs... :|

Beijo imenso para ti :)

Sun Iou Miou disse...

Nenhuma palavra é vã, Tá-se Bem!, quando dita do fundo do fundo. (*_*)

Beijo agradecido de já quase sexta e de aí a nada fim-de-semana e pronto, passou, e outra vez segunda.

condado disse...

Ta-se bem, ta-ca lado, non vaiam comenzar a cobrar por isto... (deberam?)

Sun Iou Miou disse...

Não estou a perceber patavina, Condado. Esclareça, por favor.

Ah, no sábado estão o Vitorino e o Janita Salomé em Ponte de Lima.

condado disse...

era broma, todos o pasamos ben lendo o cabaré... o de patavina tamén é moi gracioso...

Sabado? Bueno!...

Sun Iou Miou disse...

Está, Condado. Percebi. Por enquanto é de borla. Se há quem lê e por cima gosta já me sinto paga.(`_^)

Teté disse...

Muito bom texto, sim, Sun!

E tem piada este sentimento de ciúme dos homens em relação às suas filhas, quando na verdade deveriam ficar felizes... (`_^)

Jinhos!

Sun Iou Miou disse...

Obrigada, Teté. Espero que no mínimo permita perceberem melhor a história aos que fizeram, como tu, o esforço de lê-la em galego.

(Sabes? Em galego "cacho" também é "cacho". A onde é que foram os castelhanos procurar as palavras, que não falam coisa que se entenda? Hihihi!)

Teté disse...

Lê-se muito melhor, Sun, porque não sabendo uma palavra ou outra, às vezes perdia-se o sentido da frase.

E por acaso não li os primeiros capítulos, porque não sei porquê perdi, só comecei a ler quando a história já ia a meio...

Gracias, por essa indicação do "cacho" galego versus o "racimo" castelhano, eh, eh, eh! (`_^)

Teté disse...

Ah e no dicionário diz espanhol- português... :)))

Sun Iou Miou disse...

Castelhano, espanhol... Acho que quando confronto com o galego uso castelhano, quando com outras línguas espanhol... Há conotação política no emprego duma ou outra, mas não faço guerra disso.

Lá essa foto que encabeça o blogue é da minha Castilla. E, aliás, o castelhano é a minha língua materna.