terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A resolução do problema

―Já imaginou o que seria beijá-la?
O homem escancarou os olhos como quem abre os postigos da mente à luz. Cegou-se.
―Eu...
―Não, assim não. É ela o primeiro, o preâmbulo, o sonho. Só depois, e nem sempre, vem um, o próprio.
O homem calava, embaraçado, e a nuca carregava-se-lhe com o peso do mutismo, o olhar enterrava-se, as mãos contorciam-se, a vergonha crescia reconhecendo-se.
―Imagine então que ela entra na sala quando ninguém mais está, só o senhor e o luar que tudo invade ao abrir ela a porta.
O homem tem no peito bastantes cavalos que o destroçam e abafa um grito, a ansiedade.
―Só eu?
―E o luar, disse.
―Só eu e o luar.
―Isso. Mas o luar apaga-se logo, quando ela fecha, trás de si, a porta ao mundo. Aí é a escuridão.
―Não pode haver, que só seja, uma vela a arder, num canto, que ilumine o seu vulto, o dela, e o embale no seu oscilar?
―Pode.
―Então, sou eu, o luar que já não está e mais a vela prendida num canto ―sussurrou o homem, o hálito avivando a chama da fantasia no ventre, nos pulsos.
―E o vulto dela a flutuar, derramando um perfumo à fêmea intocável ―avançou a voz sobre o homem, que quase ia asfixiando no odor que o investe e o repele.
―Intocável? Intocável porquê?
―Não porquê, mas por quem, ou melhor, para quem. Para si. Repare: a covardia prendeu-lhe as mãos.
O homem tenta disfarçar a turbação engolindo o sapo, que por sua vez devora toda quanta réplica lhe acode ao estômago. Até que enfim o silêncio se estremunha na penumbra puxando o fio dum gemido da garganta sufocada do homem.
―A covardia aproveita a debilidade para tirar nenhum proveito. Não tem nada a fazer. As mãos nunca obedecerão um mandato frágil. Mas eu perguntei se já imaginou o que seria beijá-la e o senhor não respondeu.
―E como a havia de beijar se nem tocá-la posso?! Ah, pronto, perguntou se já imaginei...

Ao fundo, onde nenhum arquitecto pensou em traçar um vão, ardia uma vela de que escorriam lágrimas pela sua própria consumpção, enquanto o fume tingia de vermelho líquido os olhos do homem que estava no chão sentado. De repente, a porta abriu-se e no contraluz recortou-se uma figura cujo cheiro assaltou as narinas sôfregas pela espera. Reconheceu a fragrância que, claro, era inebriante e pungente. Ao fechar ela a porta expulsou o resplendor tíbio que o luar propiciara. À luz da vela a sombra da mulher adiantou o rosto, acordando ondas de desejo além daquelas paredes secas e desenhou no homem um reflexo canino: este arrancou com os dentes lábios e língua e cuspiu-os contra o sorriso trémulo da quimera.

4 comentários:

Teté disse...

Não sei se entendi bem: o homem era tímido, frustrado ou mais um fantasma?

E o conselheiro era um psicólogo ou um diabrete pendurado no seu ombro e sussurrando-lhe ao ouvido?

Beijocas!

pau disse...

um génio! parabens!

Sun Iou Miou disse...

Não sei, Teté. A história apenas diz o que aí está e o que a gente quiser entender. ;)

Sun Iou Miou disse...

Um génio, é isso mesmo, Pau, que os génios são seres perversos.