sábado, 30 de outubro de 2010

Afinal era só para dizer que hoje me trataram por...

As folhas nas vinhas estavam vermelhas, ainda não ocras. Viam-se bem da auto-estrada e sugeriam outonos que nunca viriam como eu gostaria que viessem. Tive vontade de encostar para tirar umas fotografias, retê-las num rectângulo como se fossem ramos de camélia apanhados um por um, os mais verdes, a enfeitar a pedra, escura ―nada se quer saber daqueles outros amarelinhos, carentes de magnésio ou ferro, como a gente, às vezes, de afecto. Mas ninguém que tenha juízo pára na berma da auto-estrada a tirar fotografias de vinhas vermelhas, nem verdes, nem sequer de vinhas sem folhas.

Por isso continuei caminho, desatenta já ao chamado da paisagem, centrados os olhos nas linhas brancas que delimitam, centrado o pensamento entre a memória e o nunca, assim também delimitado. Estreito. Até que saí.

Numa dada altura sai-se sempre. Até porque é preciso sair para entrar num mundo diferente ou no anterior que já não será o mesmo. Paguei a portagem, claro. Ninguém atravessa a fronteira do esquecimento se não levar a moeda na boca para o barqueiro. E então aconteceu o que ninguém esperava. Foi na rotunda. Mandaram parar e encostei, desliguei o aparelho de música onde tocavam cravos talvez de Bach e abri a janela ao guardinha:

―Bom dia. Tem os documentos, faz favor, os pessoais e os do carro?
―Tenho. Muito bom dia. Um momento. Ora, a carta de condução está aqui. Faz favor. E os documentos do carro...
―Mas afinal a menina é portuguesa ou é espanhola?

Diga-se de passagem que sorri e nem me pareceu a partir de aí que o céu fosse tão cinzento. Digo mais, abriu-se um clarão que durou até o início do regresso.

12 comentários:

Zé Marreta disse...

E tu que respondeste? Nem uma coisa nem outra, sou galega?...

Saudações!

Sun Iou Miou disse...

Ora, Marreta, que me importo eu com pátrias! Ele chamou-me menina. Et vive la GNR!

tempus fugit à pressa disse...

al kohol 0

tá claro se chamou menina já merecia medalha

o ego supera qualquer pátria

Sun Iou Miou disse...

Eu acho mais, (este raio de corta e cola escreve-me o nome ao contrário), que ele merecia óculos, mas há crise, e a imaginação sempre foi fértil em épocas de crise. Por enquanto eu, menina e moça.

Anónimo disse...

Ou seja, o guardinha foi muito simpático com a menina :)

Beijinhos :)

Sun Iou Miou disse...

O guardinha não foi só simpático, Capricho. Foi um clarão num dia cinzento. ;)

Teté disse...

Menina e moça e de nacionalidade desconhecida... :)))

Mas meninas seremos sempre, nem que sejamos só para nós e algumas amigas... :D

Beijinhos!

Sun Iou Miou disse...

Pois, pois, Teté, meninas: afinal no fim sempre voltamos às fraldas. (E aqui não sei se sorria, se pisque o olho, se deixe descair os lábios tristemente.)

Chousa da Alcandra disse...

Fermosa xuntanza a dun guardinha (pedindo papeis) e unha menina (dándollos). Portuguesa ou galega; qué mais ten?

Sun Iou Miou disse...

Sobre todo porque non me multou, Chousa. Non é que houbese motivos pero xa se sabe que cando hai vontade (mesmo da má) e afán recadatorio os motivos aparecen.

Ana Saraiva disse...

E o guarda nunca ficará a saber do clarão que se abriu: injustiça necessária e boa!

Anónimo disse...

Cándo hei atopar un guardinha que me diga "menino"? Aisssss.... :((
Xa postos a pedir, unha guardinha..;)